Escrita e reparação: autor transforma memórias negras em literatura e propõe olhar crítico sobre o passado

Aos 78 anos, José Alberto Silva estreia com uma obra que resgata vivências apagadas e valoriza a ancestralidade como forma de resistência

José Alberto Silva, aos 78 anos, lança seu primeiro livro e dá luz às memórias negras de Porto Alegre e da Região Metropolitana. - Crédito: Divulgação

Aos 78 anos, o escritor José Alberto Silva lançou, recentemente, seu primeiro livro 'Almanaque de Flores, Beijos e Mentiras', em evento no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. A obra reúne poesias, crônicas, cartas e homenagens que rasgatam memórias da população negra da Região Metropolitana de Porto Alegre. O foco está em territórios historicamente apagados, como o Areal da Baronesa, Ilhota e Colônia Africana.

O lançamento marca não apenas o início da trajetória literária do autor, mas também um gesto político e simbólico. José Alberto escreveu por décadas sem publicar. Agora, entrega ao público um conjunto de textos que, segundo ele, "reforça que não estamos sós e convida à união, ao respeito e ao trabalho coletivo". A publicação tem distribuição gratuita e foi realizada com apoio da 'Frente Negra Gaúcha', por meio de recursos da Lei Paulo Gustavo.

Memória e resistência

Desde a infância, a escrita sempre acompanhou José como forma de expressão. Crescido em uma casa movimentada com oito irmãos e sede de encontros da comunidade negra na Rua da Margem (atual José Alfredo), ele encontrou na palavra um refúgio. "Desde os sete, oito anos, escrevia como uma forma de organizar as ideias. Era meu jeito de existir", relatou. Parte dos textos surgiu de momentos noturnos, em silêncio, no banheiro ao longo das madrugadas.

Em seus escritos, o autor rememora espaços e pessoas marcantes, como sua irmã Neura Regina, pianista, e os antigos vizinhos da Ilhota. Ele, ainda, usa da arte como uma forma de denunciar o apagamento histórico e a transformação forçada de territórios negros. "Aquele lugar era feito de encontros, de música e de reconciliações. Hoje, o nome mudou, a história sumiu - mas está aqui, nas minhas palavras". A crítica social atravessa o lirismo de seus textos e evidencia a resistência presente na memória.

Produção e acessibilidade

Com curadoria de Camila Botelho e coordenação editorial de Silvia Abreu, o livro reúne múltiplos gêneros e se estrutura como um "almanaque anárquico", nas palavras do autor. A produção foi pensada para ser acessível: além da versão impressa, a obra está disponível em audiolivro, com narração e interpretação em Libras, no canal da Frente Negra Gaúcha no YouTube.

A publicação tem sido utilizada em atividades culturais, como rodas de conversa e sessões de biblioterapia voltadas ao público 60+, em municípios como Porto Alegre, Eldorado do Sul e Campo Bom. Para quem quiser adquirir um exemplar físico, a distribuição é gratuita e pode ser solicitada pelo endereço de e-mail ([email protected]) ou pelo WhatsApp (51 98350-5533) da 'Frente Negra Gaúcha'.

Palavra como legado

A religiosidade também marca presença na obra de José Alberto, que recorre a orixás e símbolos do candomblé para estruturar sua poesia. "Perguntei a Omolu (meu professor): que fazer do que me resta de Luz?", escreve em um dos poemas. Essa espiritualidade, segundo ele, não é apenas um recurso literário, mas fundamento de existência.

A obra, segundo a curadora, também serve como provocação. "Quantas histórias daríamos conta de narrar se tivéssemos espaço para isso?", questiona Camila Botelho. A inspiração para a escrita vem de nomes como Oliveira Silveira, Paulo Ricardo Moraes e da própria mãe, que viveu cem anos. "Escrever é, também, fazer justiça a ela, à minha história, à nossa gente", finalizou.

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