João Garcia: Com o rádio nas veias

Aos 16 anos, estimulado pelo pai, João teve seu primeiro contato com um microfone

Há vezes em que é difícil identificar como começam as grandes paixões, aquelas que prometem namoro eterno, união constante? Muitas vezes não se tem resposta para estes questionamentos nem para as equações que a vida nos dá. Mas este não é certamente o caso de João Antônio Lopes Garcia. Para entender a maior paixão da vida deste gaúcho de 54 anos, natural de Arroio Grande, apresentador polivalente de programas como Estúdio Band e Esporte Total e comentarista do Atualidade Esportiva, da Rádio Bandeirantes, basta apenas conhecer um pouco da sua infância e juventude - e da fascinação que o rádio exerceu sobre elas.
Nascido em uma família de mulheres habilidosas, João Garcia tinha uma tia conhecida na cidade por confeccionar máscaras de bruxas e monstros para o carnaval. Com dois anos, sentado em frente à sua casa, levou um grande susto ao vê-la chegar mascarada - e literalmente parou de falar. Aos três anos, o trauma passou repentinamente. A fala voltou, mas, segundo a mãe do jornalista, era melhor ter ficado calado. "Ela dizia que eu era um pequeno repórter, pois perguntava sobre tudo", recorda.
Foi do pai, primeiro rádio-técnico de Arroio Grande, que ganhou aos oito anos um Spika - rádio portátil, pequeno e transistorizado. "Antes disso, tínhamos o rádio com válvula. Chegamos a ter em casa 14, um em cada peça", diz João Garcia. Nada acontece por acaso: o avô João Jacinto havia sido a primeira pessoa na cidade a ter um rádio.
Cuidado especial
O medo dos pais de que algo ruim acontecesse nos banhos que tomava no arroio com os amigos fez com que o menino ganhasse uma atividade inovadora. "Tinham medo que tomasse muito sol, morresse afogado ou tivesse congestão", conta com carinho. O pai criou para ele uma divertida brincadeira que se tornaria, no futuro, sua maior paixão. Com um bambu, dois alto-falantes, um amplificador, um toca-discos e um microfone "montou" uma rádio para o filho.
Aos 16 anos, João teve seu primeiro contato com um microfone de verdade. Do pátio de sua casa fazia a "Voz do Poste", tocando músicas da jovem guarda, atendendo a pedidos dos amigos e transmitindo recados. Um ano depois, a brincadeira ganhou ares mais sérios. Da amizade com o curioso Marco Antônio - que possuía o brinquedo Cérebro Eletrônico, da Phillips, com o qual se aprendia a montar equipamentos de rádio como o receptor, um pequeno transmissor, o amplificador, entre outros - nasceu o desejo de criar uma emissora de verdade. Novamente o pai deu a maior força, arrumando um transmissor em 10 metros, ondas curtas, para realizar o sonho do filho. Criou-se então a Rádio Universal. "Só pegava na quadra", recorda dando uma gargalhada.
Rádio de comunistas
Década de 60, estúdio cheio, a programação começava às 6h e ia até a meia noite. Brincando de ser jornalista, João Garcia e sua turma apresentavam músicas e informavam as principais notícias - que retiravam dos jornais de Pelotas e Porto Alegre. Uma denúncia anônima de que a rádio era clandestina e feita por comunistas quase acabou com tudo. "Me lembro de dois homens entrando no estúdio. Achei que eram amigos do pai de um dos nossos colegas que era advogado. Eles viram que era rádio povão, sem notícias contra o governo, mas mesmo assim levaram a "alma do rádio", o cristal, nosso transmissor. Mas meu pai tinha mais um, e antes que saíssem da cidade, a Universal já estava no ar novamente".
Decidido o que queria ser na vida, em 1970 foi para Pelotas e um ano depois iniciava sua carreira na produção esportiva da Rádio Cultura. Em 72 surgiu a oportunidade de falar no microfone narrando o jogo Brasil x Paraguai, comemorativo aos 150 anos da Independência. "Tinha pânico do microfone, era tímido, e para criar coragem fui ao tradicional bar pelotense Gruta e pedi um martelo. Tomei dois? Fui para o ar e falei bonito". Naquele momento, tudo bem, mas o problema é que o recurso virou um hábito. "Todos os dias tinha que tomar aquele trago para encarar o microfone, até que um dia pensei: tenho duas alternativas, viro um locutor bêbado ou encaro. Se eu faço com dois martelos, com zero martelo também vou fazer. Fui para o ar e deu tudo certo".
Na telinha também
Encarar novos desafios nunca assustou o gordo João Garcia - e em 72 surgiu a oportunidade de trabalhar na TV Tuiuty, hoje RBS TV. Cinco anos depois, Edgar Loran, diretor da emissora, foi coordenar a representação da empresa em Brasília e convidou-o para ir junto. Com pouca experiência, mas muita vontade, lá se foi ele foi para a capital do país, chefiar o jornalismo da Rádio Alvorada, emissora AM da RBS.
Hoje diz que venceu a batalha em Brasília, ao ultrapassar a fronteira de menino interiorano, sem muito conhecimento na área, que fazia jornalismo municipal e paroquiano, para o homem que descobre a grande cidade. Lá viveu momentos históricos como o programa Triplex, com a Rádio Alvorada, a Bandeirantes, de São Paulo, e a Nacional, de Lisboa, que reuniu pela primeira vez Luiz Inácio Lula da Silva, na época do Sindicato do ABC, Mário Covas, deputado cassado, e, direto de Portugal, Franco Montoro, Leonel Brizola e o jornalista exilado Flávio Tavares. João Garcia recorda com orgulho: "Durante o programa, Brizola convidou Lula para fundar o PTB (sigla que Brizola perdeu e acabou optando por fundar o PDT), mas o sindicalista pede desculpas e diz que não quer o trabalhismo e sim o partido dos trabalhadores, revelando seu interesse em fundar o PT".
Apesar do bom momento profissional, Brasília teve de ficar para trás. Um dos motivos que o trouxe de volta ao Rio Grande do Sul foi a saudade que a mãe sentia. "Como dizia o poeta, a mãe é santa três vezes: na dor, na renúncia e no sacrifício. Senti a tristeza na voz dela e resolvi voltar. Era o filho caçula e Brasília era muito longe para ela. Então, vim para Porto Alegre".
Diamante lapidado
João Garcia se considera um jornalista feito a martelo. Durante sua vida profissional, diz ter tido ótimos professores, como Carlos Eduardo Behrensdorf, com quem conviveu durante sua passagem pela TV Tuiuty. O registro profissional, que tirou em Brasília, não o fez mais ou menos jornalista do que já era: a paixão pela comunicação já estava em sua veia. Eterno estudante, foi buscar nos livros as terminologias e a técnica que não tinha para se tornar o profissional que é. E não se arrepende dos esforços, se pudesse mudar o passado não o faria.
Em 31 anos de profissão, João Garcia viveu muitos episódios, e deles destaca um como o mais marcante em sua carreira. Em 1995, a Band montou uma equipe de esportes e seis meses depois acabou com ela. "Com um grupo de colegas montei uma cooperativa informal, alugando o espaço, pagando e nos pagando. Empregamos na época 25 colegas. Agüentamos por seis anos até que o mercado publicitário não ajudou e começamos a ter prejuízo". João não fica constrangido ao contar que, muitas vezes, não retirou a remuneração que teria para receber da cooperativa para poder pagar os colegas. Ficava apenas com o dinheiro que recebia para fazer programação geral na Band. "Não tenho vergonha de contar que, em certos dias, não tinha dinheiro para a passagem e ia a pé para a rádio. Tenho orgulho de lembranças como esta, pois sei que daquele trabalho que executamos foram revelados grandes talentos. Eu poderia ter feito diferente, mas talvez não fosse tão gostoso de lembrar".
A perda dos valores é uma preocupação constante do experiente jornalista. Casado com Nélia, há 26 anos, pai de duas filhas, Thaiany e Thaynã, e avô de Lucas, admite ser "bem família" e aproveitar todo o tempo livre com eles. "A sociedade está perdendo muito os valores da ética, honestidade, gratidão e amor. Não se pode ter vergonha de ser família, patriota e nem de lutar pelas coisas nas quais se acredita".
Grandes Planos
E é acreditando que João Garcia continua realizando muitas coisas. Já está em andamento o Instituto Politécnico de Futebol Brasileiro, idéia dele e de alguns amigos que gostam de movimento. Será uma universidade virtual, sem paredes, que trabalhará cursos voltados para a formação científica e técnica das pessoas que querem atuar especificamente em alguma área do futebol. "Vamos pegar cabeças pensantes do Estado e do Brasil e trazê-las para dentro desta universidade virtual e ao mesmo tempo verdadeira, real, para dar formação a quem não tem. A previsão é de estar funcionando no final do ano".
Da brincadeira criada pelo pai, que o motivou a seguir a carreira de jornalista, nasceu um sonho: ser o idealizador e diretor de uma rádio que faça 24 horas de jornalismo. Ele quer unir o velho e o novo, juntando profissionais experientes, desempregados e que já deram grande contribuição para a profissão, com os iniciantes. "Os experientes ensinariam para os jovens jornalistas o caminho das pedras".
E o coração?
No dia 17 de fevereiro João Garcia teve um enfarte, um dia depois de completar 54 anos. "Não resisti à notícia dos 54 anos de idade", diz aos risos. Depois disso, a saúde veio em primeiro lugar e os cuidados aumentaram. Os deliciosos churrascos foram trocados pela carne branca, com preferência gastronômica para os peixes de boa qualidade. Caminhadas no calçadão de Ipanema entraram na rotina do radialista, além dos medicamentos recomendados pelo médico e os alimentos funcionais como óleo de peixe, de alho e cápsulas de beringela.
Hoje ainda está com 118 quilos e persegue a meta de ficar abaixo dos 100, mas isso não é uma obsessão - aos poucos ele diz que chegará lá.
Para quem está começando
A partir de sua experiência João Garcia dá a dica para quem, como ele, tem o rádio nas veias: "Tem que ser vocacionado, estar bem informado, não ser acomodado, saber que ganhamos mal e que distribuir cartão em bingo e ser cobrador de ônibus dá mais dinheiro. Tem que amar a profissão e ser picado pela mosca azul do jornalismo e do rádio. Não pode ser partidário, saber que a notícia tem dois lados, ser defensor perpétuo dos valores permanentes, pois não é dado ao jornalista ser desonesto, imoral e parcial. São coisas proibidas para nós".
O lado poético aflora quando cria a ficção de uma terceira guerra mundial que deixasse o planeta quase todo destruído. Aí diz que seria um jornalista a comunicar para os vivos o que aconteceu. Ele diria: "Só sobramos nós e as baratas". Com o passar do tempo, sua inquietude e curiosidade o fariam sair do buraco onde se escondeu para tentar sobreviver. O jornalista descobriria uma pequena flor e o sol, voltaria para contar ao pequeno núcleo de sobreviventes e diria: "A vida renasceu no planeta com a flor e o sol está aquecendo o mundo, criando a oportunidade da vida novamente". Ele acredita que "isso é o jornalismo para mim. É saber que este é o nosso compromisso. Respeito todas as profissões do mundo, mas nenhuma delas se compara à nossa".
NOTA DA REDAÇÃO: Logo após a publicação deste Perfil, João Garcia anunciou que deixava a Rede Band para transferir-se para a Rádio Guaíba, onde começa a trabalhar nesta segunda-feira, 25/08.
 

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