Augusto Franke Bier: Mestre em humor

Cartunista, chargista e jornalista assumiu o desafio de tentar salvar o mais importante acervo da Comunicação gaúcha


Por Poti Silveira Campos

Diretor do Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa, o jornalista, cartunista, chargista e poeta Bier, 52 anos, é literalmente um mestre em humor. O título é de fato e de direito. Vencedor do Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP) e do Salão de Duisburg, na Alemanha - para citar apenas as premiações mais importantes -, Bier tem um humor muito próprio. Constante também: o sujeito faz piada até mesmo quando as coisas não estão tão bem quanto gostaria, como ocorre nos últimos tempos - há certa tristeza no cotidiano do artista em razão do término de um relacionamento de dois anos. E tem o título também por direito: afinal, o tema da dissertação de mestrado em comunicação pela Fabico, concluído em 2001, é justamente o desenho de humor.

Mesmo ali, na formalidade da linguagem acadêmica, a verve se manifesta. A começar pelas dedicatórias a Santo Expedito, por exemplo, "o santo das causas urgentes, pela graça (quase) alcançada. Se a banca não reagir bem, vai perder um devoto" ou à professora-orientadora Nilda Jacks, "pela infinita paciência em submeter um animal anárquico à metodologia acadêmica. Tarefa pela qual, aliás, deveria receber adicional de periculosidade".

"Diferentemente da maioria dos cartunistas, Bier é um estudioso. Ele acaba sendo uma referência não só pelo humor, mas por refletir sobre o humor", diz o amigo e colega de arte Edgar Vasquez. Até parece jogada ensaiada, mas Vasquez e outro amigo e colega - Santiago - utilizam a mesma palavra para definir o que lhes parece a principal característica da espirituosidade de Bier: "escrachado". "Com desenho sofisticado", acrescenta Vasquez, que salienta outra qualidade no desempenho do cartunista: a iconoclastia mesmo em relação à própria religião - Bier é protestante: "Ele não recua diante de nada. Isto é bom para o leitor."

Problemas com a ditadura

Nascido em Santa Maria, Augusto Franke Bier foi criado em Santo Ângelo, onde viveu dos sete aos 20 anos e onde também começou a atividade profissional. Primeiro dos dois filhos do professor de inglês Ernesto Maximiliano Bier e da professora de música Varna Franke Bier, publicou os primeiros cartuns aos 15 anos de idade - o que lhe rendeu, igualmente, os primeiros dissabores com o poder, ou, mais especificamente, com a ditadura. "Fiz umas piadas bobas sobre o governo e contra a fome e fui levado para interrogatório", relembra. Mais adiante, aos 18 anos e conscrito do 1º Grupamento de Fronteira do Exército Brasileiro, em Santo Ângelo, tornou-se colaborador do jornal Denúncia, editado pelo jornalista e historiador Tau Golin. "O jornal tinha pautas boas, mas eu acabei sendo levado para o xilindró. O Tau sumiu."

Em 1981, Bier seguiu para Porto Alegre, para cursar Jornalismo na Famecos - além da graduação e do mestrado, a formação acadêmica inclui especialização em educação, pela Unijuí. A formatura ocorreu em 1985 e Bier partiu imediatamente para uma aventura: foi para a Nicarágua. Na época, o país enfrentava o auge do conflito armado entre Sandinistas e Contras. Bier pretendia produzir reportagens, mas nem tudo saiu como previsto. Depois de subornar um sargento, ele conseguiu ingressar na zona de combate. A área sofreu um ataque dos Contras e Bier teve de pegar em armas compulsoriamente. Com consequências mais graves do que a batalha, no entanto, foi a disenteria contraída pelo jornalista. A infecção obrigou-o a deixar o país.

A viagem de retorno, por si só, foi outra aventura. Por terra - com deslocamentos até em lombo de burro - e por água, Bier percorreu mais de três mil quilômetros para chegar à Bolívia, e com disenteria na bagagem do corpo. No país vizinho, o jornalista encontrou a cura sob cuidados de xamãs da cultura Kallawaya. "Em três dias, os caras me curaram com ervas, pedras e pós", revela. Da Bolívia, finalmente o retorno para o Rio Grande Sul, sem a doença incômoda, mas um tanto desiludido com o jornalismo. Foi para Canela estudar hotelaria.

Jornais e assessorias

Em Porto Alegre, antes da aventura nicaraguense e boliviana, Bier se vinculou ao jornal Tchê!, de Airton Ortiz, especializado em cultura gaúcha. Para o artista, a publicação, que circulou na década de 1980, representou uma excelente vitrine. A aproximação com a editora de Ortiz também propiciou a oportunidade de ilustrar os quatros volumes de Rapa de Tacho, livros com causos do poeta, folclorista e escritor Aparício da Silva Rillo (1931-1995). No retorno da jornada pela América, passou a colaborar com jornais do Interior do Estado, inclusive com O Interior, atualmente publicado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop/RS).

No final da década de 1980, O Interior reunia um quarteto excepcional de cartunistas e chargistas: Iotti, Santiago, Vasquez e Bier. Por sugestão de Iotti, que havia criado o personagem Radicci nas páginas da publicação, Bier criou o Alemão Blau. Os dois personagens foram publicados juntos em O Interior até 1990 e tornaram-se figuras centrais na dissertação de mestrado. No mesmo período, Bier passou a atuar como assessor de imprensa do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região, cargo que ocupa até hoje. Durante a gestão de Olívio Dutra no governo do Estado, Bier assumiu pela primeira vez o comando do Museu da Comunicação, durante os 18 últimos meses do mandato do petista.

Em 2009, Bier ilustrou o projeto Personagens do Centro de Porto Alegre, idealizado por Instituto Hominus em parceria com Espaço Cultural do Sindicato dos Bancários. O projeto incluiu uma revista, um jogo e um documentário audiovisual. O jogo, distribuído em 100 escolas da rede pública da cidade, permite que até seis jogadores realizem um percurso protagonizado por 49 personagens da ciudade, como Gilda Marinho, Oddone Greco, o Rei Momo Vicente Rao, o músico Zé da Folha, o último lambe-lambe da Praça 15 de Novembro e o pichador Toniolo.

O desafio do Museu

Atualmente, a rotina de Bier está concentrada no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. É um desafio e tanto, principalmente pelas precárias condições em que se encontra armazenado o acervo que reúne centenas de milhares de itens de imprensa, de publicidade e propaganda, televisão e vídeo, cinema, rádio e fonografia e fotografia. Por falta de climatização, sem digitalização do material, com número reduzido de colaboradores, publicações e produções de inestimável valor histórico e cultural estão ameaçadas. Estão lá, por exemplo, exemplares do Diário de Porto de Alegre (1827-1828) - primeiro jornal a circular na Província de São Pedro (RS) graças a dois franceses, desertores da Guerra da Cisplatina (1825-1828), Dubleuil e Estivalet - e do Mestre Barbeiro (1835) - considerado o menor periódico publicado no século 19, com 16 por 11 centímetros.

Para Bier, preservar, recuperar e garantir a existência destes materiais é mais do que uma tarefa burocrática determinada pelo cargo que detém. É visível o apreço que reserva do acervo sob sua responsabilidade. "Se eu pudesse, passaria muito tempo aqui", assegura, enquanto caminha pelas enormes estantes abarrotadas de coleções de jornais. A maior esperança do diretor está em uma eventual parceria com a Unimed, que poderia disponibilizar um scanner orbital para o museu - hoje, o maior equipamento para digitalização existente na instituição tem formato A3, insuficiente para dar conta de jornais em formato standart, por exemplo. E mesmo que a eventual parceria resulte na obtenção do scanner, Bier ainda terá pela frente a tarefa de conseguir mão de obra especializada para o museu.

Fora do trabalho, o cotidiano de Bier está voltado principalmente ao filho Gustavo, 19 anos - o jornalista é pai também de Maribel, 21 anos, e de Marjorie, 35 anos. Gustavo e Bier estão morando juntos desde janeiro - eles haviam deixado de viver sob o mesmo teto desde que o jovem era um garoto de seis ou sete anos. "Tivemos de criar pactos para nossa convivência", afirma Bier, salientando que o espaço ocupado pelos dois é pequeno - um apartamento de quarto e sala no centro de Porto Alegre. "Mas é meu filho", salienta.

Episódios aparentemente sem importância, protagonizados pelo filho, emocionam Bier. É o momento da conversa em que o sorriso aparece mais fácil no rosto do artista. Os últimos meses foram difíceis. Além do fim de uma relação amorosa, ele ainda sofre sequelas decorrentes de um acidente em procedimento anestésico no ano passado - uma operação para retirada de pedra da vesícula resultou em cinco dias em coma e no consumo diário de uma bateria de remédios. Tempos duros: Bier fica sem resposta ao ser questionado sobre o que gosta de fazer e mesmo sobre o que pretende fazer no futuro. "A ideia de prazer fica vinculada ao outro. Tenho planos para o museu, mas não tenho planos para mim mesmo. Isto me assusta."

Planeja organizar oficinas sobre desenho editorial e lecionar. Depois, olha para a janela e contempla a luz do meio-dia de um dia ensolarado na Capital. Suspira e, talvez até por vício profissional, faz piada do próprio momento: "Bom, agora que o sol voltou, começo a me sentir não um touro, mas um carrapato da estepe".
Imagem

Comentários