Flávio Damiani: Um idealista e contador de histórias

Questionador por natureza, o jornalista viu na profissão uma maneira de provocar o senso crítico das pessoas

Se as bergamoteiras do quintal da casa de Flávio Damiani pudessem falar, certamente contariam boas histórias sobre o menino que nelas subia para brincar de narrador de rádio. O fascínio pelas ondas sonoras herdou do pai, João Oscar, que amava escutar as emissoras argentinas e uruguaias, possivelmente devido à proximidade da cidade de Colorado com os países vizinhos. Em grande parte da infância, tinha como rotina acordar de madrugada por dois motivos: acompanhar o pai e as primeiras notícias do dia. No futebol, tinha entre suas preferências grandes nomes da época, como Pedro Carneiro, Armindo Antônio Ranzolin e Milton Ferretti Jung.

Aliás, a paixão pelo esporte o levou a querer se tornar um jogador, mas as recorrentes contusões o fizeram desistir da ideia. No entanto, a vida mostrou que seu destino estava amarrado ao Jornalismo. Da mãe, dona Ilga, acredita ter herdado o lado questionador; já do pai, a leveza de um bom piadista. "Foi em casa, sem me dar conta, que aprendi a fazer leitura crítica sobre comportamento, o que me ensinou a me colocar no lugar do outro." Tais características somadas ao gosto pela escrita não poderiam dar mais certo.

A adolescência em Passo Fundo foi marcada pela vivência lado a lado com a ditadura militar e um cenário cultural efervescente. Aos 16 anos, passou a integrar o Grupo Literário Nova Geração, "carinhosamente apelidado de Sociedade dos Poetas Mortos". Idealizado pelo poeta e membro da Academia Passo-Fundense de Letras, Paulo Monteiro, o grupo era formado por jovens idealistas que faziam de seus poemas, músicas e crônicas um instrumento de resistência.

A realidade da situação se tornou ainda mais clara quando precisou servir ao Exército. "Foi lá que tive certeza de que a forma como eles agiam não batia com o que eu pensava." A convicção era tamanha que o levou para a cadeia algumas vezes por insubordinação, durante os 10 meses que serviu. Ao sair, estava sem rumo, mas não demorou e recebeu um convite para trabalhar no Jornal da Tarde. "Da Tarde era só no nome, porque, às vezes, ficava pronto de madrugada e circulava pela manhã, quando circulava", ri, ao contar.

Nessa época, fez de tudo um pouco: cobertura de concursos de beleza, notas de falecimento, entre outros. E nada o marcou mais do que escrever sobre o universo do zodíaco. De astrologia nada sabia, então, partiu para o estudo logo após receber a pauta. Texto entregue, sensação de dever cumprido, mas veio junto a surpresa ao ver a publicação assinada por um tal de Omar Cardoso. A situação se repetiu por mais dias, até que conseguiu falar com o editor. Foi aí que descobriu que, na verdade, era para copiar o texto do livro do astrólogo Omar Cardoso. Por três meses trabalhou, literalmente, por amor, já que não recebeu nada, "mas saí realizado", pondera.

Jornalismo na prática

Como diz o ditado: a primeira vez a gente nunca esquece. É assim que Flávio lembra quando, na rádio Planalto, recebeu um gravador e "enlouqueceu". Dono de uma voz grave, ainda assim achava que parecia de "taquara rachada". Por isso, decidiu seguir a dica dos experientes, a famosa gemada para engrossar. E, de fato, algo mudou, mas foi o peso. Nada o encantava mais do que ouvir seu nome ao assinar uma matéria ou em uma entrada ao vivo. "Dei muita informação errada no ar, mas foi um período maravilhoso, que me abriu algumas portas."

Não demorou para ser notado e logo assumir como correspondente do Correio do Povo em Passo Fundo. Foi lá que aquele menino que subia na árvore realizou o sonho de ser narrador. Criou e apresentou o programa Coisas da Terra, que era transmitido aos domingos pela manhã. Agricultura, pecuária e música norteavam a atração que logo passou a dividir espaço com os sindicatos ligados ao campo. No entanto, foi uma dessas participações que tirou o programa do ar.

Era 31 de março de 1979, segunda-feira, quando aconteceria uma paralisação de agricultores, que prometia parar a região. No ar, as entidades explicaram como se daria o ato e as pautas que estavam sendo reivindicadas. "Resultado: a manifestação parou a região e recebi o comunicado que a atração tinha sido tirada do ar."

O início de um grande movimento

Um dos maiores desejos dos jornalistas é ter a oportunidade de realizar a cobertura de um acontecimento que um dia faça parte dos livros de História. O faro apurado levou Flávio a testemunhar o início de um dos movimentos mais importantes para o Brasil. Em 1981, como repórter de Zero Hora, Rádio Gaúcha e RBS TV, enquanto se deslocava pela estrada que liga Passo Fundo a Ronda Alta, deparou-se com três barracos montados no cruzamento com outra estrada que vinha de Sarandi. Num primeiro momento, pensou se tratar de uma tribo nômade de índios Guaranis, mas um detalhe chamou sua atenção.

Em vez de capim, as cabanas estavam cobertas com lonas pretas, foi aí que decidiu parar o carro e conversar com aquelas pessoas. A explicação dada era que haviam sido expulsos das reservas indígenas, onde plantavam nas terras dos Caingangues e que não tinham para onde ir. "Mas algo me dizia que não era apenas isso." Horas depois, foi ao encontro do padre Arnildo Fritzen, pároco de Ronda Alta, que acabou revelando o que, de fato, estava acontecendo. Nascia ali, no que ficou conhecida como Encruzilhada Natalino, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. 

Sem pestanejar, registrou a situação e enviou para a redação. A série de reportagens realizada sobre o fato rendeu ao jornal o Prêmio Esso de Jornalismo daquele ano; já a TV foi contemplada com os prêmios ARI e Direitos Humanos. "Foi uma estreia em grande estilo", ressalta. Flávio destaca também que foi de extrema importância na formação do seu senso crítico. Isso porque, inicialmente, os próprios membros do movimento se denominavam invasores, mas em dado momento veio um estalo. "Eles ocupavam terras improdutivas, dessa forma, passamos a utilizar essa nomenclatura." Ainda na emissora, mas em Porto Alegre, atuou na central do Interior da TV e repórter da Rádio Gaúcha. Da mesma forma, coordenou por três anos o Jornal do Almoço e, ainda, foi editor regional da Rede Globo. 

Novos ares, novos desafios

No início dos anos 2000, abandonou de vez as redações. Prestes a ir para Alemanha, ficar com a filha mais nova, Vitória, e a esposa, Maria Margareth, que estava lá para defender sua tese de mestrado, foi indagado por Raul Costa Júnior se não teria interesse em trabalhar no Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS). O plano era estruturar a assessoria de comunicação do órgão. Com a vaga praticamente garantida, mas ainda um tanto resistente a aceitar, resolveu participar da reunião com os procuradores. 

Pensando na formalidade que seria a ocasião, pensou que não poderia ir de camiseta, mas o problema é que também não tinha um terno. Na época, estava hospedado na casa de um casal de amigos que lhe emprestou a vestimenta. No entanto, havia um pequeno problema: o mesmo era de lã e Porto Alegre vivia aqueles verões de temperatura escaldante. "Cheguei pingando e, quando abri a porta da sala, estavam todos de camiseta. Já saí tirando a roupa! Foi amor à primeira vista", brinca.

A passagem de oito anos rendeu frutos importantes para a sociedade. Em parceria com jornalistas da Justiça de todo o País, nasceu o Fórum Nacional de Comunicação e Justiça (FNCJ), dele foram criadas posteriormente a Rádio e TV Justiça. "Nosso objetivo era aproximar a Justiça da imprensa e do cidadão, e realmente conseguimos", comemora. Da iniciativa também originaram o Congresso Brasileiro de Comunicação e Justiça (Conbrascom) e o Prêmio Nacional de Comunicação e Justiça. O trabalho realizado acabou virando o livro 'A Comunicação na Justiça Brasileira', escrito em parceria com a jornalista Edvânia Kátia, do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) do Maranhão.

Sempre em movimento

É morando em Florianópolis, na Lagoa da Conceição, numa casa no "meio do mato", que encontrou a qualidade de vida que sempre quis. A vida mais sossegada vem permitindo se dedicar àquilo que mais gosta de fazer: estudar e escrever. O primeiro diploma foi conquistado em 2019, ao se formar em Pedagogia pela Ufrgs. A iniciativa partiu da filha, que, ao se inscrever para o vestibular de Arquitetura, perguntou se ele também não queria tentar. A ideia agradou e, então, optou pela Sociologia. Porém, na hora de efetivar o registro, a caçula marcou Pedagogia. Só descobriu a confusão na hora de fazer a prova.   

Como estágio obrigatório, teve a oportunidade de levar o que aprendeu com o Jornalismo para dentro da sala de aula. Ao lecionar para alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), incentivou que eles tivessem uma visão mais crítica do cotidiano. Para isso, utilizou a história de pessoas como da economista Maria da Conceição e da escritora Carolina Maria de Jesus, como uma forma de criar vínculo. "É dever do professor provocar e gerar reflexões. Educação tem que sair da caixinha", defende. 

Atualmente aluno do curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), está com a matrícula trancada para se dedicar aos estudos do grupo de Análise Crítica do Discurso para ingressar no mestrado de Jornalismo. Em meio a tudo isso, se divide também entre a prole, que, além de Vitória, é composta por Francisco, advogado que mora no Paraná, e Juliano, dentista e pai da Laura, de quatro anos, ambos filhos do primeiro casamento. Outro grande feito se deu no início do ano com o lançamento do livro 'Damiani em Crônicas', onde reuniu mais de 50 textos, dos 300 publicadas em sites, blogs e livros. 

Aliás, tem no cotidiano sua maior fonte de inspiração. É entre suas caminhadas pelas praias próximas, estadia na casa na Praia da Pinheira ou nas conversas com pescadores, e até mesmo nas paradas de ônibus, que nascem as melhores histórias. De bem com a vida e realizado com tudo que conquistou até hoje, Flávio encerra a conversa com a melhor definição de si mesmo: "Sou um prático e pouco teórico, pois o que seriam dos teóricos se não tivessem os práticos para estudar seu comportamento?".

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