Jorge Furtado: Pela força do cinema

Ele tentou ser médico, psicólogo, artista plástico e jornalista, mas não teve jeito, a sétima arte tem seu coração

Jorge Furtado - Rodrigo Gorosito

Há alguns anos, Jorge Furtado recebeu uma ligação. Do outro lado da linha, um produtor norte-americano. Na conversa, o gringo perguntou: "Tu tens interesse em dirigir um filme nos Estados Unidos?". Como resposta, recebeu um "não". Fim da chamada. "Se ele dissesse 'tu tens interesse em fazer um filme sobre a vida de um cara incrível que morou no Wyoming ou me contasse uma história boa, provavelmente, eu diria 'sim'. Mas não tenho nenhum interesse de fazer apenas porque é nos Estados Unidos", explica o cineasta, em uma iluminada sala da Casa de Cinema de Porto Alegre, da qual é um dos fundadores. Enquanto revela a curiosa história, os cartazes das obras criadas por ele, todas feitas no Rio Grande do Sul, o cercam.

A partir dessa situação, é possível ter uma noção de como pensa o cineasta. Jorge se importa com a história, com o personagem e com o que ele tem a dizer. Rodar um filme apenas por fazer, independentemente do lugar, não é algo que lhe interesse. As produções em que trabalha trazem personagens complexos e, acima de tudo, priorizando o lado humano. A sua frase favorita, inclusive, diz muito sobre isso: 'Jamais réel, toujours vrai' ('Nunca real, sempre verdadeiro'), creditada ao francês Antonin Artaud.

Não, o que ele faz não é real. Os filmes, as piadas, as séries, são todas ficção, mas são de verdade. "Essa ideia de que, mesmo com a piada mais boba, tu pode botar uma verdade ali, é algo que faço porque acredito, isso me move". Categórico, ressalta que está nesse negócio porque ama o que faz. Oferecer dinheiro para ele trabalhar em um filme sobre algum assunto qualquer não o motiva. A curiosidade é um dos seus principais propulsores. Tanto é que a vontade de querer saber quem era uma mulher chamada Primavera das Neves o levou a fazer um documentário, em 2017. Ele quer contar histórias de pessoas para que outras se identifiquem.

Com mais de 300 roteiros para a TV, 10 longas e 13 curtas-metragens no currículo - que somam vários prêmios, Jorge se orgulha de sua caminhada até aqui. Realizado por ter feito muitas coisas, sente que as convicções foram importantes, pois filmes não se apagam. Eles perduram. E, por isso, é essencial que se tenha paixão pela obra. Mesmo com mais de 35 anos de carreira, fica com a sensação de que nem começou ainda, pois tem muito a fazer. "Tenho projetos pela frente, uns já engatilhados e outros que nem pensei."

Seu amor pelo trabalho é tanto que nem hesita em afirmar que, no futuro, espera estar se dedicando às mesmas coisas de agora. Essa é uma das vantagens de sua profissão: pode envelhecer fazendo. Destaca que conhece vários diretores que escreveram e dirigiram até muito tarde. E um dos seus principais expoentes nesse quesito é Jean Rouch, documentarista francês, que morreu aos 93 anos, durante o trabalho. "Isso que é vida boa: morrer, com quase 100 anos, em um acidente de jipe na África, enquanto filma."

Da Medicina ao cinema

Não foi uma decisão rápida a de fazer Cinema. Jorge cursou quatro graduações diferentes, mas não terminou nenhuma. Em 1977, entrou para a Medicina e, ao mesmo tempo, para a Psicologia. Logo, percebeu que era impossível conciliar o primeiro com qualquer outro curso. Então, se voltou à missão de se formar médico: ficou por três anos e meio no curso. No entanto, decidiu fazer outro vestibular, desta vez, para Artes Plásticas. Passou. E, mesmo sabendo que era algo extremamente difícil, ficou cursando as duas.

No entanto, no início dos anos 1980, começou uma onda de cinema em Porto Alegre, realizado com câmeras Super 8, com filmes de Giba Assis Brasil, Nelson Nadotti e Carlos Gerbase. "Eu vi a possibilidade de fazer isso e me interessou muito. Larguei a Medicina, para a qual eu não tinha vocação nenhuma". Assim, fez outro vestibular, dessa vez para Jornalismo. Entrou e conciliou o novo curso com as Artes Plásticas. Já na Comunicação, juntou-se a um grupo de estudantes da Ufrgs, para, então, realizar uma atração-piloto para a TVE, o 'Quizumba'. Depois, largou as duas graduações. Mas não a paixão pelo audiovisual.

Autodidata - assim como toda a sua geração, pois não havia curso de Cinema no Brasil -, Jorge aprendeu o que sabe vendo filmes, lendo, pesquisando, participando de cineclubes e conversando. Foi no extinto cinema Bristol, que ficava na Avenida Osvaldo Aranha, que teve contato com os grandes cineastas do passado, com ciclos que iam de Jean-Luc Godard a François Truffaut. "Eu ia ao cinema praticamente todos os dias. Eram cinco filmes em uma semana", relembra. E foi assim que descobriu que havia milhares de maneiras diferentes de se dedicar à sétima arte. "Foi aí que eu percebi que existia alguma coisa por trás da tela. Isso também me motivou muito", explica. E foi assim que ele se deu conta de que fazer filmes poderia ser mais divertido do que imaginava.

Do bairro Petrópolis...

Nascido em Porto Alegre, em 9 de junho de 1959, Jorge Alberto Furtado é filho de Jorge Alberto Jacobs Furtado, professor de Filosofia e de Sociologia e funcionário público, e de Dercy Terezinha Vieira Furtado, que foi vereadora e deputada estadual, bem como uma líder feminista. Ele é o quinto de seis irmãos - e quase todos são da área de Humanas: Cláudio, o mais velho, é jornalista; Sérgio é publicitário; Nina é médica-psicanalista; Maria da Graça é professora e psicóloga; e Taís, que é a irmã mais jovem, é professora da Ufrgs e jornalista.

As primeiras lembranças de infância são no bairro Petrópolis, onde teve uma vida de calçada, de jogar futebol em um campinho próximo ao Jardim Botânico, de brincar na rua. O Centro Histórico também tem um espaço especial nas recordações do cineasta, principalmente por conta do bonde, que, mesmo sendo criança, pegava sozinho para ir aonde queria.

Cresceu alimentando duas paixões: escrever e desenhar. E achava que esses dois mundos, o da palavra e o da imagem, eram distantes e, por isso, meio inconciliáveis. Mais tarde, percebeu que o cinema era exatamente a junção das duas atividades que amava fazer. No entanto, confessa: se soubesse desenhar bem, possivelmente, iria fazer histórias em quadrinhos. "Eu gosto muito de HQs, pois é a mistura da imagem com a palavra. O cinema é a mesma coisa, mas para quem não sabe desenhar", brinca, rindo.

... para o mundo.

Quando da época do 'Quizumba', conheceu Giba Assis Brasil. Em 1984, dois anos depois de entrarem na televisão, fizeram o seu primeiro curta, que foi 'Temporal', com a Luz Produções, empresa fundada por Jorge, Ana Azevedo e Zé Pedro Goulart. Mas, para começar a fazer Cinema na Capital, foram muitas dificuldades. Na cidade, por exemplo, não tinha video assist, então, quando filmava com uma câmera 35mm, era preciso mandar o conteúdo para São Paulo para revelar. Uma semana depois, recebia o copião, e, então, projetava para saber o que havia sido filmado. "Se estava fora de foco, se a atriz piscou, se uma mosca pousou no nariz dela? Só ia dar para saber sete dias depois".

Assim, surgiu a Casa de Cinema de Porto Alegre, em 1988, juntando 13 pessoas com a ideia de fazer filmes na Capital, pois todo mundo que queria fazer Cinema ia para o Rio de Janeiro ou para São Paulo. "Nós não. Não queríamos ir embora. Queríamos fazer Cinema e continuar aqui. E, aí, criamos a Casa de Cinema de Porto Alegre - não é à toa que tem esse nome. E aqui permanecemos há 31 anos", afirma, orgulhoso.

Da empreitada, surgiram grandes obras do audiovisual nacional - todas tendo o Rio Grande do Sul como cenário: 'Ilha das Flores', vencedor em festivais como Gramado e Berlim; 'O Homem que Copiava', campeão do Grande Prêmio Cinema Brasil de 2004; e 'Doce de Mãe' que, como telefilme, rendeu um Emmy Internacional para Fernanda Montenegro, em 2013, e, dois anos depois, como série, venceu na mesma distinção o troféu de Melhor Comédia - a estatueta dourada, inclusive, é um dos destaques na sala de reuniões da Casa de Cinema de Porto Alegre e uma de suas maiores satisfações.

Entre rotina, família e palavras

Foi em um set de filmagens onde conheceu Nora Goulart, produtora e sócia da Casa de Cinema, há 30 anos. Casaram e, juntos, têm uma filha, Alice. Antes, foi casado por mais de 10 anos com Eliana. Deste matrimônio, nasceram dois filhos: Júlio e Pedro - este, seguindo os passos do pai. Depois de trabalhar como ator, ele atua como roteirista. Júlia é formada em Psicologia e está fazendo doutorado em Portugal. Alice, que é a mais jovem, cursa Arquitetura.

Nos poucos dias de folga, costuma ficar em casa, com a família. Fã de séries - afinal, trabalha com isso na Rede Globo e precisa estar sempre atualizado -, também gosta muito de passear, ir ao cinema, ler e viajar. Em relação aos filmes atuais, revela estar mais atrasado. "Quase não vejo filmes blockbusters, estou por fora de 'Vingadores'. Essas megaproduções que ganham o Oscar não me interessam muito. Prefiro filmes menores, mais humanistas", conta.

Apaixonado por comida brasileira, como guisadinho de milho, arroz, feijão e farofinha, confessa não saber lidar com as panelas, mas se garante à frente de uma churrasqueira. Formado no catolicismo, não tem religião - mas gosta e estuda sobre o assunto. Gremista, o cineasta aprecia todos os esportes - menos beisebol, que "não tem graça". Nos momentos de lazer, a sua distração principal também está nas palavras: gosta de arrumar os livros. "Agora, ela está uma bagunça. Mas tenho uma biblioteca toda em ordem alfabética pelos autores, organizada pelo assunto". E, dentre todas as obras, uma de suas favoritas é 'Grande Sertão: Veredas', de Guimarães Rosa. Jorge é tão fã que, ao lado de Guel Arraes, fez um roteiro para transformá-lo em filme.

Sem preconceitos, pois, de acordo com ele, esse é o pior defeito que um criador pode ter, afirma que ouve de tudo. Assim, mesclando com sua curiosidade, transita entre funk e rock. E, ao falar de música, não demora para mostrar a carteirinha da União Brasileira dos Compositores. Ao realizar a série 'Mr. Braun', fez as letras de várias músicas e, por isso, agora é um compositor. Por estar sempre fazendo muitas coisas, acaba sendo uma pessoa um pouco dispersiva e, ao mesmo tempo, desorganizada - com sua aversão por usar agenda e relógio, acaba se esquecendo ou perdendo algumas coisas. "Mas tudo bem", segundo garante.

Nem tudo precisa ter uma moral...

"Eu sou uma pessoa curiosa com obsessões temporárias", define-se. Quando descobre algo, quer saber tudo sobre e, depois de levar para a TV ou para o cinema, desencana e parte para outra - menos Shakespeare, esse perdura. Generalista, Jorge se interessa por tudo que é humano. E o cinema entra nesse meio, pois é uma atividade coletiva. Precisa de pessoas para conseguir rodar um filme, ao contrário de outras artes, que podem ser feitas sozinhas.

Essa predileção pelo ser humano teve um relevante capítulo após o sucesso de 'Ilha das Flores'. O Channel 4, do Reino Unido, convidou-o para fazer uma produção de 20 minutos para a emissora, com tema livre. O cineasta, então, quis provar que a vida de qualquer um poderia render um filme. E foi isso o que ele fez: bateu em uma porta aleatória, encontrou Noeli Cavalheiro e, então, começou a contar a sua história para o curta 'Esta não é a sua vida'. "O resultado ficou incrível, pois a vida dela é espetacular".

Durante as gravações, ao sair do bairro da Glória, onde a protagonista morava, e ir para Três de Maio, cidade em que morava a família dela, Jorge recorda de um momento que sempre lhe provoca risadas: "Fomos em uma equipe de 15 pessoas, em um ônibus, mais ela e os filhos. Quando chegamos, as pessoas perguntavam o que ela fez de tão incrível para estarem filmando. E nós dizíamos que não aconteceu nada, estávamos apenas filmando a vida dela. Quando chegou o ônibus, começou todo mundo a descer e já descarregar os equipamentos. E o pai e a mãe dela meio que se assustaram. O pai, com um sotaque bem alemão, perguntou: 'O que houve ali, Noeli?'. E ela começou, no meio da equipe, a me procurar para ver onde eu estava, enquanto dizia 'Tem um que explica'. Me dei conta que essa é a função do diretor: explicar. Sou eu que explico".

Um dos momentos mais marcantes da carreira não está relacionado a nenhuma grande personalidade ou prêmio internacional, mas, sim, com uma senhora evangélica, que esteve na pré-estreia de 'O Homem que Copiava'. Na trama, os bandidos saem livres. A veterana mulher, então, chegou para Jorge e comentou: "Gostei muito do filme, mas tu devias botar uma coisa escrita, assim ó: 'Três dias depois, eles foram presos'", diverte-se relembrando. O cineasta, então, explica que, na sua visão, fez 'O Homem que Copiava' em uma época em que o Brasil "não era tão abobado" e que, hoje, seria impossível rodar esse filme. Justifica suas decisões utilizando 'Alice', de Lewis Carrol, que, em sua visão, é apenas uma aventura. "A personagem principal mesmo fala: 'Algumas histórias não precisam ter moral'. E eu concordo".

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