A vida de Lela Zaniol é uma mesa farta. Entre sabores e descobertas ? sobre o mundo e sobre si mesma ?, ela construiu uma trajetória profissional que é, ao mesmo tempo, profundamente pessoal. Para a empresária, a Gastronomia é um universo que vai muito além da cozinha, sendo um lugar onde a conexão humana e o acolhimento são os pratos principais.
Enquanto buscava um lugar no mundo, trilhou uma jornada que viria a marcar a Comunicação e a Gastronomia no Rio Grande do Sul. Ao lado dos sócios Diogo Carvalho e Diego Fabris, ajudou a transformar o Destemperados em uma das plataformas de Gastronomia mais longevas e respeitadas do Brasil. Na contramão do que já existia, a ideia não era apenas falar de comida, mas celebrar a cultura, o comportamento e as relações que florescem ao redor da mesa.
Sobre cuidar e ser cuidada
Embora tenha nascido em São Marcos, em 20 de dezembro de 1982, Manuela Bertolazzi Zaniol cresceu em Caxias do Sul. Filha do arquiteto Carlos e da professora de geografia Elione, é a caçula de três irmãos ? Juliano, o mais velho, nasceu em 1977, seguido por Frederico, de 1981. A diferença de pouco mais de um ano entre ela e o irmão do meio fez com que a mãe, que se dedicou em tempo integral à família, tivesse, nas palavras de Lela, "muito trabalho".
Mas não faltaram momentos felizes. Se as memórias da infância dela pudessem ser resumidas em um som, seriam as ondas do mar de Porto Belo, em Santa Catarina, onde veraneava com a família. ?Passávamos o dia inteiro no barco, mergulhando e nadando?, relata. Enquanto os dias pareciam ficar mais longos, as noites traziam a subida da maré, que Lela ouvia bater contra o muro da casa enquanto todos se reuniam para conversar. ?São lembranças muito queridas e que eu quero muito que a minha filha também tenha?, afirma.
Aos cinco anos, Maria é a ?pecinha que faltava? na família da empresária e da pediatra Caroline. A chegada da filha foi a realização do sonho de ser mãe. ?Sempre fui muito maternal e acho até que a minha relação com a comida vem um pouco disso, de ter esse cuidado. E a Maria só comprova que era um desejo que valia muito a pena ser atendido?, conta. E embora a linha entre a folga e o trabalho seja tênue ? visto que a atuação no Destemperados tende a se confundir com o lazer ?, Lela garante que a prioridade dos dias livres é a família.
Passear de bicicleta, caminhar pelos parques de Porto Alegre, visitar os gatinhos e cachorrinhos para adoção na Redenção ou, claro, comer em algum restaurante são alguns dos momentos em que aproveita para "viver a cidade" junto de Maria e Caroline. Além disso, a família gosta de fazer viagens curtas para Torres e a Serra Gaúcha, onde encontram os pais de Lela ou simplesmente aproveitam os lugares da região.
Descobrindo o mundo e a si mesma
Embora a primeira carreira dos sonhos tenha sido a Oceanografia, a sementinha de uma graduação de Relações Internacionais se implantou na cabeça de Lela muito cedo: ?Acreditava que se eu conhecesse o mundo poderia fazer a diferença?. Motivada pela vontade de aprimorar o inglês, em 2001, cruzou fronteiras rumo ao que viria ser um dos grandes marcos da sua vida: finalizar o ensino médio em Washington D.C., nos Estados Unidos. ?Atribuo absolutamente tudo a essa primeira experiência. Ali eu abri a minha cabeça para muitas possibilidades e até para trabalhar a minha insegurança e a frustração?, pontua.
Naquela época, a empreendedora acreditava que o idioma seria a principal ferramenta na carreira. Anos mais tarde, com a maturidade e a experiência, a perspectiva mudou: "Você pode dominar a gramática, o vocabulário, mas se não tiver o que falar, não adianta". O retorno ao Brasil, oportunidade em que deu início à graduação, não foi um adeus aos Estados Unidos. ?No terceiro ano de faculdade fui fazer estágio na embaixada brasileira em Washington?, conta.
Embora a experiência fosse valiosa, percebeu que aquele não era o caminho certo e que o sonho de ?mudar o mundo? não era viável. ?Você se dá conta que se conseguir mudar só o seu próprio microcosmo já está muito bom?, explica. Ainda assim, o destino reservou uma terceira experiência em terras internacionais. Já formada, Lela foi selecionada pelo governo de Santa Catarina ? onde morava ? para participar de um projeto com o sociólogo italiano Domenico De Masi, autor do best-seller 'O Ócio Criativo'. Estudou com ele na Universidade Sapienza de Roma, na Itália, onde também trabalhou no Festival de Ravello. ?Estar em conexão com a arte e ver a cidade vivendo em função dela foi muito legal?, salienta.
Ao retornar da Europa, também voltou a atuar na área de convênios da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), onde trabalhava desde a formatura. Estava em um momento de poucas perspectivas profissionais quando reencontrou uma amiga de infância, Renata, namorada de Diogo Carvalho. Ele e Diego Fabris estavam começando um blog sobre Gastronomia. ?A Renata achava que era um projeto legal, mas que os dois precisavam de um terceiro elemento, para ter o Voto de Minerva. E ela me apresentou para eles?, explica.
Um toque de (Des)tempero
O ano era 2007 e o Destemperados nascia em um cenário no qual a internet começava a se popularizar e as mídias se tornavam mais acessíveis. "Foi uma questão de oportunidade, timing, sorte e alinhamento dos astros?, afirma. O projeto, que já nasceu multiplataforma, sempre buscou ir além do comer, falando também sobre a experiência, o convívio e as relações que acontecem ao redor da mesa. ?Desde o começo fomos muito fiéis ao nosso propósito, que é ajudar o setor de bares e restaurantes a perseverar. Então não queríamos pegar dinheiro dessas pessoas. E até hoje somos assim?, explica.
Inicialmente, o Destemperados era conciliado com outros trabalhos, mas logo se tornou o único foco de Lela e, conforme crescia, os clientes também aumentavam. Para ela, o maior de todos os desafios foi criar o Destemperados do zero. ?Não tinha um comparativo, um script ou um manual?, afirma. Ao se caracterizar como uma pessoa ?apocalíptica e controladora?, ela revela que vivia com medo que o projeto acabasse. Até que Diogo interveio: ?Ele me olhou e disse: 'Você não se deu conta que já deu certo?'?, recorda.
O digital levou ao rádio, com o programa 'Food Music', na Itapema ? que hoje é a 102.3 FM ?, e à realização de iniciativas em todo Brasil, o que chamou a atenção do Grupo RBS. Após um projeto-teste na Copa do Mundo de 2014, com a criação de um restaurante pop-up na Praça da Matriz e ações com food trucks, a parceria com o grupo de Comunicação foi firmada em 2015. A equipe assumiu o caderno de Gastronomia da Zero Hora, mas novas oportunidades surgiram, principalmente com o lançamento de GZH. Por fim, em 2020, o Destemperados também chegou à TV: ?Já são cinco anos que não saímos do ar, seja com os projetos por temporada ou semanalmente no 'Baita Sábado'.?
Orgulhosa da legitimidade do trabalho, Lela acredita que a Gastronomia não se limita a restaurantes estrelados: ?Quando olhamos para a pandemia, para enchente ou para todas as crises que acontecem, a comida acaba sendo o socorro para muitas pessoas que passam dificuldade e decidem, por exemplo, vender marmita ou bolo de pote?. Dessa forma, no Destemperados ela cumpre a missão de dar voz às pessoas que vivem da área gastronômica.
Comer, viver e superar
Lela explica que, mesmo trabalhando com Comunicação, ela e o sócio refutam o crachá de comunicadores, pois entendem que estão falando sobre um assunto que faz parte da vida deles. Para a empreendedora, a hora da refeição não é somente sobre se alimentar: a mesa é um lugar sagrado e ela se recusa a comer com pressa. Além disso, evita os almoços de trabalho. ?Eu não quero dividir uma comida legal para ter um papo ruim?, afirma.
Com o paladar mais voltado ao salgado, Lela gosta de ?comida comfort?, sendo a culinária italiana uma delas. ?Gosto muito de massa e de 'comida de fogão', feita na panela, com molho. Gosto dela preparada por quem gosta de comer?, afirma. Mas apesar de ter esse lado mais ritualístico, ela não é rígida ao sentar à mesa. Recentemente, uniu a família com a família do sócio em um restaurante, um encontro de muitas conversas entre adultos e crianças. No entanto, a empresária notou pessoas incomodadas em outras mesas. "O mais importante para mim é que eu não me levo a sério. Sempre vejo que pessoas que se levaram muito a sério, via de regra, tiveram que reaprender algumas coisas ou recalcular a rota", reflete.
Outra convicção que Lela carrega consigo está relacionada a um grande desafio pessoal que enfrentou. ?O maior exercício que temos que fazer quando passamos por uma situação difícil é não esquecer, porque é muito fácil entrar no automático e deixar de prestar atenção no que realmente importa?, defende. Na véspera do aniversário de 40 anos, em 2022, uma colonoscopia revelou a presença de muitos pólipos intestinais ? lesões internas no cólon ou reto que podem evoluir para um câncer ?, relacionada a uma alteração genética. ?Eu tive um ano de depressão, tristeza e luto por algo que eu não estava vivendo. Fui negligente com meu trabalho, com a minha família e comigo porque estava esperando ficar doente?, conta.
Após exames e consultas, em janeiro de 2024, foi diagnosticada com um tumor no duodeno, mas para acessar a área teria que redesenhar uma cirurgia bariátrica que fez anos antes. Porém, uma complicação aconteceu durante o procedimento: ?Eu tive um sangramento nessa cirurgia, que evoluiu para um choque hemorrágico?. A recuperação exigiu um período na UTI e até sessões de hemodiálise. No período, que coincidiu com as enchentes no Estado, a terapia se tornou uma grande aliada para que Lela olhasse para aquilo que não estava olhando, inclusive para si.
Liberdade de ser
Para o futuro, o que mais deseja é manter a saúde em dia, acompanhar o desenvolvimento da filha e seguir contribuindo para o universo da Gastronomia. E uma das contribuições que Lela espera fazer é por meio da Literatura. "Eu quero muito fazer um livro meu compartilhando algumas receitas e histórias", revela. Ela imagina uma obra que conecte as pessoas por meio das receitas e das narrativas, um projeto que foi deixado de lado, mas que ainda quer realizar.
E não faltará liberdade para isso, até porque este é o adjetivo que ela usa para se definir: ?Eu me considero uma mulher livre?. Ela existe com relação a tudo, seja trabalho, vida, sexualidade, sucessos, fracassos ou saúde, mas a maior de todas, com certeza, é a de ser ela mesma. "E, principalmente, livre de mim. Porque eu sempre fui a minha maior algoz", reflete.