Luiz Carlos Merten: O dono do tapete vermelho

Com 55 anos de carreira, a vida do jornalista é digna de cinema. E, talvez por isso, este é o seu lugar favorito no mundo

Luiz Carlos Merten, jornalista e crítico de cinema - Reprodução

No primeiro contato com Luiz Carlos Merten - via telefone fixo, uma vez que não usa celular ou redes sociais -, para marcar a entrevista, o jornalista, antes de encerrar a ligação, fez questão de criticar as capas de alguns jornais gaúchos. Segundo ele, era lamentável o pouco espaço que os periódicos deram para a triste marca das 400 mil mortes pela Covid-19 atingida no Brasil.

Corta para o dia da entrevista em si - que seria realizada via Zoom, às 15h. Merten não apareceu no horário combinado. Após várias tentativas frustradas de contato com ele, por telefone, percebi, por volta das 16h, que a conversa não aconteceria. Enviei um e-mail, perguntando se tinha acontecido algo. Algumas horas depois, recebo a resposta: "Cara, me desculpa. Poderia inventar qualquer coisa, mas esqueci. Estava no cinema. Me liga para remarcarmos". 

Esses dois capítulos servem para demonstrar um pouco de quem é Luiz Carlos Merten: um ser humano com um olhar crítico apurado, sempre com energia para questionar e opinar. Ao mesmo tempo, um amante do cinema que, depois de tanto tempo sem poder entrar na sala escura, devido às restrições da pandemia (hoje, ele está totalmente imunizado e se permitiu retornar), esqueceu até da entrevista que havia marcado. E não tem como competir. Merten e cinema têm uma relação de longa data, um amor antigo.

Não é brincadeira. Foi em janeiro de 1966 quando o jornalista formado pela Ufrgs começou a escrever sobre a sétima arte, no extinto Diário de Notícias. Depois, nos anos seguintes, passou por outras empresas, trabalhando no Grupo Caldas Júnior, na Zero Hora e, também, no Diário do Sul, onde ficou até o final dos anos 1980. Com a chegada de uma nova década, Merten também queria novos ares - e desafios. Partiu para São Paulo e, na mala, claro, a paixão pelo cinema. 

Na capital paulista, conseguiu um freela no Estadão, em 1989. Essa vaga temporária logo virou um casamento duradouro: 31 anos, para ser mais exato. E, mesmo depois de uma separação - Merten foi desligado do jornal em dezembro de 2020 -, ambos decidiram que essa história, tal qual como faz Hollywood, merecia uma continuação. Hoje em dia, o jornalista está novamente contribuindo com o periódico, novamente como freelancer - praticamente, um remake.

"Sempre teremos Paris"

Ele nutre uma grande paixão por Paris. Se orgulha de dizer que já visitou a capital da França mais de 50 vezes - e, mesmo sem se considerar um homem religioso, sempre que está na Cidade das Luzes, religiosamente, faz questão de dar uma passadinha por Notre Dame. A construção da catedral o fascina - ele, por sinal, chegou bem próximo de se formar em Arquitetura, antes de aceitar que o Jornalismo era o seu destino. E foi justamente por causa da Comunicação que a França se tornou tão importante para o profissional.

Em 2006, o crítico integrou o júri que concedeu o prêmio Camera d'Or na 59ª edição do Festival de Cinema de Cannes, um dos maiores e mais cobiçados do mundo. A distinção é dada para a melhor estreia de um diretor. Aquele momento foi o auge para Merten. "Uma enorme honraria para mim pisar no tapete vermelho de Cannes como profissional integrante do júri", conta, com um sorriso quase infantil no rosto, ao relembrar a ocasião gloriosa.

E quem tem o calibre de ser júri em Cannes, obviamente, também pode arrumar confusão com gente de quem os meros mortais apenas gostariam de chegar perto e tirar uma foto. Foi assim com Jeff Bridges, que ousou falar mal de John Wayne e Henry Hathaway, um dos seus diretores favoritos, bem na sua frente. Merten não deixou barato e desmanchou a argumentação do ator oscarizado com fatos. O mesmo se repetiu com Sean Connery, que teve o disparate de comparar um filme mediano seu com as obras de Alfred Hitchcock. O jornalista é leal com quem gosta e, claro, isso se estende aos grandes mestres do cinema.

Entre árvores e livros

Muito antes de pisar no tapete vermelho de Cannes, o hoje consagrado crítico de cinema frequentava lugares mais simples. Natural de Porto Alegre, Merten nasceu em 12 de setembro de 1945 como o último herdeiro de um total de quatro irmãos. Naquele dia, foi constatado que ele havia vindo ao mundo com má formação física nas mãos e nos pés, devido a um medicamento tomado pela sua mãe durante a gravidez. "Por conta disso, muitos poderiam pensar que eu seria uma criança muito protegida e cuidada, mas não foi nada disso. Eu vivia pendurado nas árvores, igual a um macaquinho", conta.

E foi ali, nos galhos das árvores que tinham no pátio de sua casa, no bairro Auxiliadora - "o número era 176, nunca vou me esquecer" -, que o garoto começou a viajar pelo mundo da fantasia. Entre as obras que devorava nas alturas, juntamente com as ameixas que colhia diretamente do pé e só passava na blusa para limpar, uma ficou bem marcada em sua memória: 'Tarzan', de Edgar Rice Burroughs, que fazia parte da coleção Terramarear. 

E o gosto pela leitura foi crescendo. Após a morte precoce do pai, o representante comercial Fredolino, quando Merten tinha apenas 10 anos, ele começou a frequentar o local de trabalho da irmã Marlene, a Livraria do Globo, sempre após o fim das aulas no colégio Júlio de Castilhos que, na época, ficava no Centro de Porto Alegre. Entre as infinitas histórias escritas, ele tinha a oportunidade de, também, ver os seus autores, pois o local era ponto de encontro dos escritores editados pela Globo. Então, a infância foi em contato com nomes como Erico Verissimo e Mario Quintana. 

"Eu era um piá na época. Ficava intimidado e, ao mesmo tempo, fascinado, pegando um livro e chegando perto, fingindo que lia, só para ouvir o que eles diziam. Ali, aprendi a viajar e tenho a impressão que foi neste momento que se gestou a minha admiração pelo processo de criação", diz. E, nessa volta no tempo, empolga-se com as suas próprias memórias e percebe que, aos 75 anos, essa é a primeira vez que conta essa história em uma entrevista. 

A crítica de cinema surgiu também na juventude, quando o seu irmão Ildo, que trabalhou na Comunicação da Varig, começou a trazer os jornais internacionais para ele, nos anos 1960. Foi a partir de periódicos como o New York Times que Merten - que dominava o inglês por conta do ensino obrigatório na escola - começou a descobrir cineastas como Ingmar Bergman e Federico Fellini. Pronto, ali foi o ponto central de sua história, que juntou os dois elementos que seriam o seu futuro: jornal e cinema.

Incuravelmente romântico

Workaholic assumido, Merten traz consigo lembranças que, geralmente, misturam a vida pessoal e a profissional - afinal, para ele, que trabalha com o que ama, as férias e o serviço são praticamente sinônimos. Tanto é que, na maioria de suas viagens para cobrir eventos de cinema ao redor do mundo, ele sempre fez questão de organizar o tempo para conseguir dar uma esticadinha pelas cidades as quais estava visitando. Assim, a vida e os filmes se tornam uma coisa só. 

Inclusive, uma das histórias mais importantes é digna de uma comédia romântica. Ele conheceu Dóris Bittencourt ainda na faculdade de Arquitetura. E foi paixão à primeira vista. Logo, namoraram, casaram de papel passado e tudo e, depois, se separaram. Passado algum tempo, ambos reataram, casaram novamente como manda o figurino e, depois, se divorciaram de novo. O jornalista conta essa história aos risos e cheio de carinho pela ex-companheira que, apesar de não ser mais esposa, segue sendo uma grande amiga. Juntos, entre as idas e vindas desse amor, tiveram uma filha, Lúcia, que tem 38 anos.

Morando sozinho na capital paulista, Merten, em dias normais - ou seja, sem pandemia -, passava entre a redação do jornal e o cinema. Atualmente, fica mais por casa, escutando sambas de Teresa Cristina ou tangos de Astor Piazzolla, ou envolto por seus muitos livros e revistas acumulados, quase que compulsivamente, em suas incontáveis viagens. Volta e meia, redescobre alguma aquisição que nunca leu e se surpreende com aquelas histórias.

E, por falar em histórias, um dos maiores críticos de cinema do País tem em 'Rocco e Seus Irmãos', de 1960, o filme favorito. E, claro, o romantismo impregnado em Merten tem relação com isso. Na história do longa-metragem italiano, ele consegue enxergar uma expectativa de mudança social no mundo que o comove. Apesar daquela promessa não ter se concretizado, ele vê na produção, atualmente, um realismo fantástico, mas que sempre deixa uma pontinha de esperança a cada revisita ao clássico. "Gosto de acreditar nas pessoas e que as coisas boas podem acontecer. Sou um jornalista, crítico de cinema e, acima de tudo, incuravelmente romântico", finaliza.

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