Marcelo Canellas: Fruto da melhor profissão do mundo

Jornalista gaúcho carrega consigo grandes coberturas, ao longo de 33 anos de carreira

Marcelo Canellas - Crédito: Marcos Silva

"O Jornalismo é uma paixão insaciável, que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade". Este é um trecho de um texto do escritor colombiano Gabriel García Márquez, que poderia facilmente ter sido assinado por outro jornalista: Marcelo Canellas. 

Extremamente ligado à Literatura e com alguns encontros com os autores favoritos, ele abriu a primeira reportagem fora do Rio Grande do Sul parafraseando Mário Quintana, um dos escritores prediletos. Assim o faço para contar sua história, mas com outra referência, Gabriel García Márquez.

"Tudo é questão de despertar sua alma" (Gabriel García Márquez)

Sem jornalistas na família, Canellas carrega consigo uma lembrança que o liga ao Jornalismo. Recorda-se de observar ao longe o pai, Zacheu, além do avô e dos tios, com um jornalão em mãos. Correio do Povo, Folha da Manhã e da Tarde, além da Zero Hora: não importava qual impresso, mas sim o quanto estes o levariam para perto da futura profissão. "Isso sempre tinha a ver com reunião de família. Então, acho que criei um vínculo afetivo, Mais tarde, muito brinquei de fazer jornalzinho na escola", rememora.

Entretanto, não foram só os homens da família que o influenciaram a cursar Jornalismo. O comunicador adora ouvir e contar histórias e traz consigo essa paixão por causa da avó paterna, que colocava os netos para dormir contando algo que envolvia dragões e espadas. Uma das lembranças mais deliciosas da infância é de quando saíam de Santa Maria para ir à praia, em Curumim.

Quando chegou a hora de ingressar na faculdade, entretanto, o Jornalismo não foi a primeira opção. Apesar da paixão, acreditava que não teria futuro trabalhando com Comunicação em uma cidade do interior. Então, começou a estudar Agronomia, inspirado pelo pai agrônomo, o qual admirava muito. Meses depois, a Gestão Ambiental perdeu um profissional, mas a sociedade ganharia um grande jornalista. E tudo isso aconteceu no meio de uma aula de Bioquímica, quando estava perante um quadro negro repleto de enzimas. Foi então que se questionou: "O que estou fazendo aqui?". No próximo semestre já estava matriculado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na área que tanto o chamava desde a infância.

"Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la" (Gabriel García Márquez)

Com 33 anos de carreira, sendo 11 como repórter especial do 'Fantástico', da Rede Globo, Canellas propõe pautas as quais acredita merecerem "existência pública", além de questões que o incomodam como cidadão. Ele olha para números, mas enxerga pessoas. Por isso, não é à toa que o lema profissional é "deixar-se surpreender pela vida". Para ele, o melhor a acontecer é a tese ser desmontada pela vida concreta e realidade subjetiva. Isso porque "a partir dos escombros do desmonte se percebe que pode surgir algo muito mais interessante do que se imaginou". 

No início da carreira substituindo um repórter de Polícia, que estava de férias, no jornal 'A Razão', já buscava por um olhar de crônica, com o intuito de colocar diálogos nas reportagens. Após seis meses no que chama de "escola prática" - a RBS TV Santa Maria, onde fazia de tudo um pouco, desde a criação de pautas até a edição -, ele recebeu uma indicação para desbravar o Brasil e trabalhar na EPTV Ribeirão. Lá, além do grande amigo que conheceu, o então gerente de Jornalismo da época, Rubens Volpe, passou por uma confusão um tanto quanto inusitada. 

Ao receber as coordenadas de um morador da futura casa de trabalho, avistou um prédio grande, como o descrito, entrou no local, apresentando-se ao porteiro como o novo repórter. Cumprimentou os profissionais que estavam na redação e rumou à sala do chefe de Reportagem. Porém, o que escutou do gestor quando se apresentou foi: "O quê? Não estamos contratando repórteres!". Isso porque ele estava no SBT da cidade e não na afiliada da Rede Globo, a EPTV.

Lá, de repórter da madrugada se tornou rapidamente de rede, com entradas, inclusive, no Fantástico. O poder com as palavras e o olhar diferenciado os levaram à Rede Globo de fato. E isso foi só o começo de uma grande jornada. E por grande me refiro a um profissional que "esquadrinhou este País", visto que não existe estado que não tenha ido, além de ter feito reportagens por toda América do Sul e quase que a Latina inteira, bem como em países na África e Europa. "Andei por aí um bocado", brinca ele, que ainda acumula no vasto currículo em duas Copas do Mundo e uma Olimpíada.

Alternando entre o Rio de Janeiro e Brasília - onde foi escalado para cobrir o cenário político, mas acabou dando um jeito de transformar o que era debatido no poder executivo e legislativo em reportagens de campo -, acabou se aproximando do 'Fantástico' e 'Globo Repórter', os quais permitem reportagens mais aprofundadas. 

"A reportagem (...) é, na realidade, a reconstituição minuciosa e verídica do fato." (Gabriel García Márquez)

Dentre as inúmeras reportagens que realizou ao longo da trajetória, o que mais destaca é que esses momentos só foram possíveis porque tinha ao lado grandes parceiros como cinegrafistas. "Somos como letra e música, um não se segura sem o outro", exalta. Contudo, entre mais de uma dezena de profissionais que foram dupla de Canellas, ele destaca dois: Luis Quilhão e Lúcio Alves.

O primeiro, já falecido, realizou uma série de matérias emblemáticas no Pará, onde abordaram conflitos fundiários e a expulsão da população por parte de grileiros. O segundo, por sua vez, é hoje o principal parceiro, com quem produziu um especial sobre o Cerrado e a outra, um divisor de águas em sua carreira, cuja temática tratava sobre a fome no Brasil.

"O Jornalismo (...) não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte" (Gabriel García Márquez)

Cobrir a tragédia da Boate Kiss foi um dos momentos mais difíceis pelo qual os jornalistas que lá estiveram já passaram. Mas e quando o profissional é criado em Santa Maria - cidade onde aconteceu a fatalidade -, frequentou a mesma universidade na qual muitos dos jovens que estavam no local e ainda frequentava todas as sextas-feiras e sábados uma boate?

De férias quando soube do incêndio, no primeiro momento resolveu não cobrir, visto que seria algo muito pesado e pesaroso para ele, pois inclusive conhecia muitas famílias das vítimas que lá estavam. Porém, conforme o tempo passou, acabou rumando a Santa Maria, cidade que ele tanto conhecia, mas o esperava com um desconhecido legado . Mais de oito anos após o acontecimento, ainda sem o julgamento dos réus, volta ao local pelo menos uma vez por ano, para prestar uma homenagem aos jovens que se foram, e também para fazer um alerta sobre a impunidade.

Todavia, enquanto a cada 12 meses realiza esta cobertura ainda sem fim, durante a trajetória profissional precisou interromper outra. E, infelizmente, não foi por um bom motivo. Na Rússia, para cobrir a Copa do Mundo de 2018, o que seriam 50 dias de trabalho, foram reduzidos pela metade. Isso porque o estado de saúde do pai, que estava com câncer, agravou-se bastante na época. Ao deixar o país onde acontecia o evento esportivo, voltou a Santa Maria, enquanto enfrentava boas horas de voo e estrada. Ao chegar no hospital, encontrou Zacheu consciente, abraçaram-se e choraram juntos e meia hora depois o eterno exemplo e grande amigo perdeu a consciência. 

Atualmente, ele, que gosta muito do processo e sempre tenta editar as matérias, pretende se debruçar e estudar as contradições que permeiam o Brasil. "O que na maioria são frutos das desigualdades", aborda, ao salientar que tem o intuito de jogar uma luz sobre esses assuntos tão importantes para a sociedade brasileira. Dessa forma, Canellas acredita que servirá de interlocutor às pessoas que têm dificuldade em colocar sua voz.

"Todo mundo tem três vidas: uma vida pública, uma vida privada e uma vida secreta" (Gabriel García Márquez)

Com uma rotina agitada, o lado bom é que, enquanto todos voltam ao trabalho na segunda-feira, é Canellas quem está de folga. Quando não é visto diante das câmeras ou em ilhas de edição, é com os filhos que se encontra - Pedro, de 20 anos, e Gabriel, 15, frutos do casamento com a ex-esposa. "Levo uma vida simples, com muito contato com a natureza. Tenho um sítio, que fica encravado no Cerrado, e lá vejo tucanos e macacos passando na frente de casa", relata. No local, ainda cria galinhas caipiras e cães. 

Em relação à música, tem predileção por MPB, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, assim como os gaúchos Nei Lisboa e Vitor Ramil, Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Totonho Villeroy. Além disso, é apresentado constantemente a músicas novas, especialmente de Rock, pelos filhos que são músicos - Pedro toca guitarra e Gabriel, baixo. Para completar, tem um verdadeiro fascínio por Blues e é fã de carteirinha da cantora Alberta Hunter.  Sem quase entrar na onda das séries, gosta muito de documentários. No Cinema, aprecia o realismo italiano, a direção do mexicano Luis Buñuel, além de ser atraído pela narrativa e pelo roteiro do Jean-Claude Carrière. 

"A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la" (Gabriel García Márquez)

Nascido em Passo Fundo, por causa de uma passagem da família na cidade, devido ao emprego do pai, foi ainda bebê para Santa Maria. Por isso, sem memórias da cidade natal, considera-se santa-marianense. Filho mais velho de Zacheu e da professora aposentada de História Laís, tem um laço afetivo muito grande com o município. Irmão do professor e pesquisador em Agronomia Luciano e da cabeleireira Taís, carrega até hoje os amigos antigos que criou pelas ruas do município, além de ter feito novos, muito por conta do Diário de Santa Maria, impresso para o qual escreveu uma crônica semanal por mais de 15 anos. 

Hoje, morando em Brasília, cidade onde residem os filhos, jamais deixou para trás as raízes gaúchas. Elas se manifestam no futebol, esporte que pratica, e acompanha o time do coração, Internacional, por meio da rádio Gaúcha, enquanto compra todos os pacotes de competições nas quais o colorado joga, além de ser sócio do clube. Mas não é só para saber mais sobre o time do coração que ele procura a imprensa gaúcha. Isso porque Canellas lê a Zero Hora todos os dias. 

Outros traços da cultura gaúcha, ele também "segue à risca". Toma chimarrão diariamente e faz churrasco praticamente todos os finais de semana. Também aprecia muito cozinhar, principalmente aos filhos. "Modéstia à parte, faço um risoto inspirado naquela gringada de Santa Maria", revela. Em relação à fé, apesar de ter sido criado em uma família Católica, com dois tios que atuam na Igreja, Padre Amadeu Canellas e Dom Tadeu Canellas, não é praticante. 

"A prática da profissão, ela própria, impunha a necessidade de se formar uma base cultural, (...) a leitura era um vício profissional" (Gabriel García Márquez)

Desde o amor por histórias, que carrega da infância, a trajetória pessoal e profissional de Canellas é envolta pela Literatura. Ele, que se diz mais da leitura do que do vídeo para passar o tempo, foi inspirado e instigado a criar uma série sobre a temática, após a leitura de 'Geografia da Fome', de Josué Castro.

O jornalista possui não livros favoritos, mas autores prediletos, os quais são grandes influências. Rubem Braga talvez seja uma das maiores. Chegou a conhecê-lo pessoalmente durante um passeio no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, apesar de ter parado na frente dele e de Armando Nogueira, e só conseguir abrir a boca para responder que estava tudo bem. Situação parecida com outro escritor de quem era fã, Mário Quintana. O jovem Canellas esbarrou no autor de 'Poeminha do Contra', durante um passeio na Rua da Praia, mas só deu tempo de juntar a bengala, que havia caído com o choque, e entregá-la ao poeta, que logo saiu um tanto quanto mal-humorado.

Entretanto, foi com o também jornalista Gabriel García Márquez que conseguiu ir além de uma simples troca de palavras, mas uma lição. Aliás, não foi uma, mas três vezes que esteve com o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. E tudo isso por obra do Jornalismo. Premiado em incontáveis momentos, uma das láureas mais importantes, a qual conquistou duas vezes, era justamente concedida pela fundação criada pelo colombiano. 

Muito mais do que uma estatueta, os ganhadores se reuniam com o próprio escritor, com o intuito de participarem de seminários e palestras para discutir sobre o Jornalismo. E não parou por aí. Também foi convidado pela mesma entidade para dar aulas de Telejornalismo a jovens estudantes na América Latina, enquanto participou da celebração de 15 anos do local, ao lado de Gabriel García Marquez.

Enquanto a vida do cidadão Marcelo absorve tudo o que a Literatura pode ensinar e agregar, o profissional Canellas a entrelaça e desfruta com passagens, referências e aquela grande vontade de mudar o mundo. Afinal, no Jornalismo:

"Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir em uma profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte."


Este texto traz passagens do texto 'A Melhor Profissão do Mundo', de Gabriel  García Marquez, além de outras citações do autor.

 

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