Mário Marcos de Souza: O jornalista obcecado pelos livros

Hoje, ele coleciona prêmios por crônicas que mesclam o social ao esporte, sua área profissional. Mas esta caminhada teve muitos rompimentos e marcas.

Mário Marcos de Souza nasceu em 27 de setembro de 1948, em Criciúma, na casa de Antonina Parente de Souza, professora, e Mario Rufino de Souza, marceneiro. Filho mais velho, tem dois irmãos (um está nos Estados Unidos, outro trabalha em construção) e uma irmã, ainda professora na cidade natal.


Estudar foi decorrência da situação da família: nem na do pai, nem na da mãe havia alguém com curso superior. Mas havia, isso sim, e acima de tudo, entre os Souza, o orgulho de ver um filho formado.  Nada fazia antever, porém, que o primogênito seria, um dia, jornalista.


Criciúma, naqueles inícios de anos 60, tinha cerca de 60 mil almas. Nem curso Científico ou Clássico havia por lá. Daí que Mário Marcos, terminado o Ginásio, teve de ir embora para Tubarão e, para buscar o canudo de curso superior, teria de enfrentar mais uma mudança: Florianópolis. O curso, Odontologia. O ano, 1967.


No segundo ano, desistiu. "Ou eu fazia uma faculdade que me permitisse trabalhar ou nem poderia continuar estudando", relembra, num tom longe das queixas, um olhar para o período difícil, faculdade cara, livros caros, impossibilidade de receber ajuda financeira de casa. Foi quando escreveu para um amigo de um companheiro da pensão em que morava: queria informações sobre jornalismo, um curso que lhe permitiria também trabalhar e se sustentar. Encorajado pela resposta, encarou outro rompimento com pais e irmãos: sem avisar ninguém, pegou um ônibus e rumou para Porto Alegre, em busca de um tio cujo endereço desconhecia e a quem não via desde pequeno. "Eu passei por Criciúma de madrugada, torcendo para não ter ninguém conhecido na Rodoviária. Quando cheguei em Porto alegre, na velha rodoviária que ficava na avenida Júlio de Castilhos, também de madrugada, eu tinha uma vaga idéia que meu tio, irmão do meu pai, trabalhava com areia. E fui caminhando, em direção ao bairro Navegantes, costeando o rio. Até que o encontrei".


Era fim de 1968, o ano em que, como todos sabem, o mundo virou de pernas para o ar a partir da revolta dos estudantes de Paris. Mário Marcos foi morar com o tio e, ano seguinte, tornou-se mais um bixo em Jornalismo.  Hoje, mesmo reconhecendo que, lá atrás, na adolescência, não havia qualquer pista que indicasse este caminho, admite que gostava, sim, de escrever. Lembra até do quanto ficara impressionado com o relato, na revista "Realidade", que José Hamilton Ribeiro havia feito do acidente de que fora vítima no Vietname e que lhe custou uma perna. "Fiquei fascinado", diz.


A estréia em redação


A data da estréia numa redação ele não esquece: 14 de abril de 1970. A Folha da Tarde, na época, fazia uma espécie de concurso para selecionar estudantes. Mário Marcos topou. Ele, Nilson Souza (hoje responsável pelos editoriais de ZH) e Cleiton Selistre (em Florianópolis, há anos dirigindo televisão), os três colegas e amigos. O teste era num sábado. Pautas distribuídas, depois as laudas preenchidas a espera da avaliação de um júri de jornalistas veteranos. E eis que os três amigos são aprovados: dois para esporte, Mário e Nilson, e um para a reportagem geral - Cleiton.


Na primeira reunião com os veteranos da FT, ouve atento o conselho dos veteranos aos moços: ler Ernest Hemingway e, diariamente, o caderno de esportes do Jornal da Tarde, diário paulista que se caracterizou por apresentar uma forma editorial e gráfica diferenciada dos demais jornais da época.


Mário Marcos tira os óculos, coça os olhos, cruza os braços e vai enumerando os nomes dos que, saídos de uma editoria que, por anos, merecia até de muitos colegas, um tratamento preconceituoso, hoje pontificam no jornalismo: os velhos parceiros Nilson, chefe de opinião de ZH, e Cleiton, diretor de Jornalismo de Televisão em Florianópolis, David Coimbra, Juremir Machado da Silva. Modesto, esquece de se colocar nesta lista. Afinal, ele coleciona prêmios de Direitos Humanos com suas crônicas em que cuida para unir a questão pontual dos esportes a temas que o inquietam, em geral os sociais. E só de prêmio ARI (Associação Riograndense de Imprensa) são 11!


Isso tudo teve um começo. Achou que a coluna ?Bola Dividida? precisava sair do estilo só notas e estampar um assunto que desse outro tipo de recado para o leitor. Propôs, então, usar o sábado para integrantes da equipe escreverem textos maiores, em rodízio. Por questões logísticas, terminou ele escrevendo sozinho. São quase 15 anos de crônicas de sábado. Quanto a enfeixar estes anos todos de cronista em livro, diz que até tem vontade, mas acha que tudo o que queria dizer aos leitores está ali, na página do jornal. "Tenho trauma com sessão de autógrafos, de, na hora, tremer a mão, esquecer o nome de amigos", se diverte e se desculpa o editor de esportes que revela ter durado exatos dez anos o seu tempo de torcedor. O Metropol de suas infância e adolescência era um time formado por homens que trabalhavam nas minas. "Hoje, não torço nem em Copa do Mundo, me bloqueio".


Entre 1970 e 1972, Mário Marcos de Souza foi do time de jornalistas da Folha da Tarde, um dos jornais da então Companhia Jornalística Caldas Jr. Um dia, estava ele no Rio, cobrindo a Seleção Brasileira, quando o colega João Carlos Belmonte, da Guaíba, avisou: ele seria convidado para a Folha da Manhã, filhote mais novo da chamada Casa de Caldas, que surgira com propostas de um novo jornalismo. Era, como para a grande maioria dos estudantes de jornalismo e dos profissionais da época, a concretização de um sonho. Na volta da viagem, mudou-se para a outra redação (aliás, no mesmo grande salão do primeiro andar do velho prédio da rua Caldas Jr.), e dali só sairia para, atendendo a novo convite, subir o Morro Santa Teresa e coordenar a editoria de esportes da novíssima TV2 Guaíba. "Foi boa a experiência. Mas eu não a repetiria", comenta Mário.


Em 1984, no que ele classifica de "auge da crise" da Caldas Jr (que resultou no fechamento do Correio do Povo e da Folha da Tarde, pois a Folha da Manhã já havia sido fechada), foi chamado a mudar de endereço e de empresa. Desta feita, pelas mãos de Núbia Silveira. Entrou como sub, saiu como editor de geral de Zero Hora, em 1993, quando retornou a seu ninho, o jornalismo esportivo, pelas mãos de Divino Fonseca.


Amor para a vida toda


A estas alturas, Mario Marcos de Souza já era um senhor casado, pai de filho. Desde 74, estava unido a Maria Helena, pedagoga, que fora sua colega na cadeira de "Estudos de Problemas Sociais Brasileiros ou algo do tipo", na verdade uma aula que reunia alunos de diferentes cursos no Salão de Atos da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma vez por semana. "Lembro como se fosse agora. Era noite, eu estava saindo de casa com o Cleiton, havíamos matado aula. E eu vi a Maria Helena na parada, esperando ônibus. Estava de conjunto cinza de saia e casaquinho, e com uma bota que ia até acima do joelho. Eu fui nocauteado ali", se encanta, olhos brilhando e sorriso maroto enquanto relembra a cena.


Isso foi em 1972. Um ano depois, estavam casados, com bênção, presença de amigos e colegas, parentes da noiva, na Igreja Santo Antônio. Não avisou os pais, prevendo a dificuldade para que deixassem Criciúma. Repetia o que já havia feito antes, quando não os avisara da mudança de Criciúma para Porto Alegre, nem da desistência em ser dentista, tampouco da decisão de ser jornalista. Foi um novo rompimento, como o primeiro, aos 14 anos.  


"Quando Felipe, meu filho mais velho, fez 14 anos, eu lembrei a ele o que representava sair de casa. Contei que eu chorava o dia todo. Hoje, seria diferente", continua Mário, retraçando estes afastamentos múltiplos de suas raízes, retomando memórias da ruptura no tecido familiar que significou, acima de tudo, cuidar da própria vida.  O necessário envolvimento familiar, cuja falta tanto o fizera chorar quando teve de viver, ainda menino, numa pensão, ele encontraria na relação com Maria Helena, paixão para a vida toda.


Hoje, Felipe tem 27 anos, é engenheiro que faz seu doutorado, saiu de casa. Tiago, 21 anos, ainda está com "os velhos", cursa engenharia mecânica. Estes guris talentosos que Mário elogia com aquele brilho de pai orgulhoso nos olhos, a seu ver, "talvez por ação do subconsciente", nem se aproximaram de esporte ou jornalismo. "Fui muito ausente", afirma, sem melodrama, o homem que fez várias Copas do Mundo, uma Olimpíada e muitas, mas muitas viagens para cobrir a tal Seleção Canarinho e clubes brasileiros envolvidos com a Libertadores da América.


Trauma de telex


Viagens que, lógico, geraram muitas lembranças. Como a da ida, em 1975, para os Estados Unidos, ver a estréia de Pelé no Cosmos. Era a primeira manhã em Nova Iorque , ele e o fotógrafo Sérgio Arnaud resolveram ir até o velho estádio do time estadounidense. Mário Marcos perguntou por Pelé a um funcionário que lhe disse: já está aí. Onde? No vestiário. A imagem que vem, quando narra o fato, é a de um vestiário modesto e, no meio dele, uma só pessoa, com a perna esquerda sobre um banco de madeira, colocando uma atadura: Pelé. "Eu sentei neste banco e conversamos".


Depois, era a loucura de correr, enviar o material sem saber se chegaria. Nesta ocasião, muito antes de os computadores chegarem às redações locais, Mário Marcos enviou suas reportagens diárias digitadas nos terminais da velha UPI, agência que nem existe mais. Assim como não existe mais o telex, um assunto traumático para ele. "Há anos faço controle da hipertensão arterial e devo isso, tenho certeza, à tensão permanente nas viagens."  Tudo por causa do telex, ferramenta que exigia um constante trabalho de, a cada viagem, descobrir onde poderia o texto ser digitado e, a seguir, transformado naquela fita cheia de furos que um operador teria de transmitir para Porto Alegre.


Em abril de 1978, ficou um mês acompanhando a Seleção pela Europa e Arábia Saudita. Viagem cansativa. Para evitar problemas, em Paris, já se adiantara, tratando de mandar sua matéria (por telex, é claro) para o jornal. Às três da manhã, já no hotel, em Jeddah, descobre (informado por Samuel de Souza Santos, colega da Guaíba das lides esportivas) que tudo o que ele, diligentemente, havia enviado de véspera, se perdera no caminho entre o telex francês e Porto Alegre. Por sorte, havia levado com ele a fita. Mas teria de se acertar com o telexista árabe, num país fechado ao mundo, e convencê-lo a transmitir o texto.  


Já havia conseguido coisa parecida, quatro anos antes, na viagem a Santiago, em plena ditadura chilena, para decisão da Libertadores. Foi assim: após o jogo, Mário Marcos e Divino Fonseca se dirigiram à cabine de telex. Por volta de meia noite, missão cumprida, irresponsavelmente - como assinala - decidiram voltar para o hotel. O operador aconselhou: não saiam, o toque de recolher está valendo desde as 23h. Saíram. Caminharam pelo meio da rua, ele carregando a máquina de escrever portátil, de ferro, pesada. De repente, a 100 metros do hotel, uma sirene. Eles se puseram a correr. Mas os gritos de alguém sem rosto na noite, ordenando que parassem e erguessem as mãos, interromperam a corrida. O braço de Mário Marcos, levantado, doía, com a máquina suspensa. Mas não podia se mexer. O medo era imenso. Até que o porteiro do hotel veio em socorro da dupla. Assim mesmo, depois de cruzada a portaria, permaneceu, por minutos, o pânico de um tiro pelas costas.


Fins de semana tranqüilos


Mário curte estas lembranças. Já poderia estar aposentado, mas continua preso ao jornalismo. Claro que se sente atraído pela possibilidade do famoso tempo livre, que jornalista nenhum tem, enquanto está em redação. Daí o valor que dá aos fins de semana de folga. É hora dos filmes que, afirma, devem fazer pensar. Comédia, só inglesa ("a americana é burra"), documentários sempre, em especial os de Michael Moore. Os vinis (um velho toca-discos garante a sessão musical) e os CDs misturam Paulinho da Viola, Chico, Gil, Elis, Tom, Pink Floyd, Led Zeppelin e Mercedes Sosa. Tudo isso é prazer de estar em casa, com Maria Helena, que ele classifica de companheira ideal de viagem, como aquela que fizeram, há pouco, Itália afora. Ressalva: "Eu também sou um excelente companheiro de viagem".


Leitura é o prato principal servido neste menu de lazer caseiro, degustado com satisfação. Tão importante é o item que, obsessivamente, quando não encontra o título desejado no mercado nacional, não hesita em importar. As escolhas seguem um método próprio deste leitor voraz: se vê referência, em uma obra, a assunto que lhe desperta interesse, Mário Marcos vai atrás de algum livro que aborde exatamente este tema. Foi assim com "Senhores de Roma", cujo quinto volume, sem tradução no Brasil, se viu obrigado a buscar lá fora, em espanhol.


Foi assim com livro sobre Alexandre, o Grande, em que leu sobre um diário de viagem de um dos comandados: consultou Voltaire Schilling, o historiador, para saber se este diário fora resgatado. Não, foi a resposta, acompanhada da sugestão de que lesse "Anabasis", de Xenofonte. Não teve dúvida: mandou vir da Espanha.


Os temas jornalísticos, é claro, permeiam toda esta leitura que, em noites de pouco tempo, podem se restringir a uma ou duas páginas. Ficar sem ler, jamais! Da lista, fazem parte, entre títulos e autores ("sou ruim para lembrar nomes", avisa) "Hiroshima", de John Hersey, "Fama e Anonimato", reedição de obra de Gay Talese, "Rivalidades Produtivas", de Michael White, e escritos de José Hamilton Ribeiro, Ruy Castro, John Lee Anderson e Fernando Morais.


Aliás, Fernando chamou sua atenção já quando ousou escrever sobre Cuba, local que é o atual objeto de desejo para viagem do jornalista que veio de Criciúma. As contradições da ilha andam chamando a atenção de Mário Marcos de Souza. Afinal, lembra ele, Nelson Mandela, quando saiu da prisão, quis se encontrar com Fidel para agradecer pelo que Cuba fez em favor da eliminação do apartheid na África. Está no documentário "Cuba, uma Odisséia Africana", de Jihan El-Tahri, que ele comprou pela Amazon. Agora, é conferir in loco. Mesmo que, depois, tenha de aturar, com sua proverbial calma, caso resolva escrever a respeito, os patrulheiros de plantão.


Quem convive com Mário Marcos sabe: nada abala as convicções deste cara de visível bonomia mesmo na defesa dos pontos de vista mais polêmicos.

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