Zeca Brito: Sem fronteiras

Cineasta de Bagé, ele ainda não se sente uma pessoa realizada, mas, sim, realizando

Zeca Brito

"Sou um borderline", afirma Zeca Brito, ao destacar que gosta de viver no limite. E não é apenas uma frase de impacto: ele é nascido em Bagé, município apelidado de Rainha da Fronteira, por fazer divisa com o Uruguai. O cineasta, aliás, orgulha-se de suas origens e sempre revisita a terra natal, buscando levar a riqueza cultural tanto da cidade, quanto do Rio Grande do Sul para o mundo, passando por cima das separações territoriais.

No primeiro semestre de 2019, por exemplo, apresentou 'Legalidade', filme que conta a história do importante movimento liderado por Leonel Brizola, que retardou a mudança de regime de 1964, para a sua primeira exibição além dos limites do Brasil: no 35º Festival Latino de Chicago, nos Estados Unidos. Além disso, há 11 anos, ele é um dos responsáveis por realizar o Festival Internacional de Cinema da Fronteira, entre a sua Bagé, Livramento e Rivera, no Uruguai.

Inclusive, é neste mesmo festival, em que os limites entre os países vizinhos não são muito mais que linhas em mapas, que Zeca se identifica. "Em Porto Alegre, as referências são muito fechadas. Existe certo desajuste por aqui. A fronteira, por ser lugar nenhum, tem um ambiente de projeção internacional, no qual consigo enxergar melhor o Cinema que faço no Rio Grande do Sul", explica.

E não são apenas os limites físicos que sente inclinação a romper. Ele, em iniciativas como o próprio Festival da Fronteira, quer encurtar a distância entre as pessoas e a cultura. "É minha contribuição política, levar o audiovisual para uma região periférica, excluída do pensamento hegemônico dos grandes centros", destaca. No evento anual, propõe sessões gratuitas, debates, filmes com os quais o circuito comercial não trabalha, discussões políticas e, cheio de orgulho, ressalta que já levou o famoso crítico e teórico cinematográfico Jean-Claude Bernadet para pensar a sétima arte a partir daquele território.

Era pra ser

Aos 12 anos, Zeca ganhou a primeira câmera de vídeo e a inaugurou fazendo uma entrevista gravada que, quase duas décadas depois, virou base do documentário 'Glauco do Brasil', de sua autoria. Ou seja, desde criança, o audiovisual já estava presente na vida do filho de Marilu da Luz e Sapiran Brito, diretores de teatro, atores e arte-educadores. "Nasci bem encaminhado. Era difícil ir por outro caminho. Fui sempre muito estimulado", relembra o cineasta.

Ainda na infância, mesmo antes de atuar com uma câmera na mão, era criador de cenas memoráveis: fazia xilogravuras, que é a técnica em que o artesão utiliza um pedaço de madeira para entalhar um desenho - a terra natal, inclusive, é nacionalmente conhecida por este tipo de arte. 'Grupo de Bagé' e o já citado 'Glauco do Brasil', ambos documentários dirigidos por Zeca, abordam essa tradição.

A escolha pela profissão veio ao terminar o Ensino Médio, quando teve que decidir por um curso superior - casualmente, na época em que os cursos de audiovisual estavam chegando às universidades gaúchas. Na ocasião, ficou dividido entre dois caminhos: Artes Visuais ou Cinema. "Pensando também financeiramente no meu futuro, a primeira opção era meio assustadora, caí nessa armadilha de achar que iria me dar melhor no Cinema e foi uma furada", brinca.

Ele, então, decidiu estudar audiovisual na Unisinos, em 2004, na segunda turma de Cinema da universidade. No entanto, não conseguiu deixar a outra paixão de lado e, no ano seguinte, começou a cursar Artes Visuais na Ufrgs. Inclusive, cursou as duas graduações em paralelo. No entanto, migrou para a cerâmica, depois para fotografia, mas, definitivamente, não faz mais gravuras. Só Cinema.

Rotina de cineasta

Zeca constantemente se define como um 'borderline'. No entanto, mesmo vivendo sempre no limite, segue algumas tradições bem convencionais. Morando na Rua Sofia Veloso, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, ele acorda de manhã, toma café por volta das 8h na Padaria da República e, como um ritual, lê todos os jornais do dia. Bem fiel aos lugares que frequenta, acredita que é até um pouco chato neste sentido: "Se gosto de determinado restaurante ou padaria, vou ali todo dia. É bem fácil de me achar".

A sua produtora, que era na Cidade Baixa, agora, está se mudando para o Bom Fim, o que deverá afetar levemente a rotina. Deslocando-se pouco para ir até onde os seus filmes eram editados, pelas 9h30, vai para a ilha de edição, ficando lá até meio-dia. Após isso, vem o intervalo de almoço que, geralmente, mescla com alguma reunião. À tarde, procura se dedicar à produção, enquanto a ilha segue trabalhando. Ao final do dia, volta para ver o que foi feito. "Minha rotina de trabalho, geralmente, é na ilha de edição, com exceção dos períodos em que eu estou filmando. A rotina de um cineasta é uma relação de ilha de edição, com eventuais espaços de filmagem. Ou é isso, ou é espera. E, nessa etapa, a gente se ocupa com leitura, Netflix, cinema, teatro, namoro, flerte...", explica.

Não acreditando muito em dias de folga, para ele, tudo é uma coisa só: a vida. Entre os hobbies, um dos seus favoritos é o samba. "Sou sambista, tenho um bloco de carnaval, o Maria do Bairro", conta, orgulhoso. Apesar de gostar de séries, no momento, não tem televisão em casa. "É uma experiência nova para mim, e está sendo muito interessante. É uma limpeza, uma experiência de autoconhecimento. Mas, admito que, nos finais de semana, vou para a minha mãe assistir 'Chernobyl'", conta, logo após, afirmando que já está no limite e que, logo, deverá comprar um aparelho novo.

Festeiro, gosta de sair às sextas e aos sábados e, em Porto Alegre, o Bar Ocidente é um dos lugares preferidos. Admirador da cena musical da Capital, gosta de estar presente nos lugares em que os amigos, como Roger Lerina, estão tocando. A Casa de Cultura Mário Quintana também é um espaço que frequenta, por conta da rica programação cultural. Inclusive, diversos filmes de Zeca já estiveram em exibição na Cinemateca Paulo Amorim: "Sou figurinha carimbada aqui", brinca.

Seu Sapiran e dona Marilu

"Sou a raspa do tacho", conta Zeca sobre ter nascido quando a mãe já tinha 46 anos. Assim, com irmãos bem mais velhos e de outros relacionamentos de seus pais, foi criado sozinho e, de acordo com ele mesmo, foi um pouco mimado e isso refletiu na vida adulta. "Sou uma pessoa que, se fico muito tempo sozinho, me perco. Preciso ter uma certa guia na vida. Por ser muito criado sem limites, preciso sempre ter alguém que me chame de volta. Sou meio 'borderline', admito, até nas intensidades, mas isso é reflexo da infância, por ser mimado", confessa.

Com uma infância muito lúdica e bem estimulada, com bastante foco para a imaginação, criação e atividades inspiradoras, Zeca seguiu integrando a arte e seus pais. Dona Marilu, por exemplo, foi a vilã de 'O Guri', o primeiro longa-metragem, em 2011. Já 'Legalidade', brinca que foi uma encomenda do pai, que sempre afirmava que o Rio Grande do Sul tem mais de 400 anos de histórias para serem contadas. E a vontade de seu Sapiran de ver a trajetória do movimento da Legalidade nas telonas era tão grande, que ele próprio viveu Leonel Brizola aos 84 anos, contracenando com Letícia Sabatella. "Coloco eles direto nos meus projetos. Devo até um filme em que os dois tenham mais protagonismo", confessa.

As dores e amores do fazer Cinema

Foi aos 14 anos que Zeca vendeu a primeira gravura, quando teve a grande satisfação profissional. "Tive um sentido de existência mesmo. Depois daquilo, de pensar que algo que podia partir do nada, só do imaginário, poderia reverter em subsistência mesmo, em uma profissão, em algo que pudesse me sustentar", relembra. Ele ainda revela que, em toda estreia de um filme, esse sentimento se repete.

No audiovisual, Zeca começou fazendo videoclipes para bandas de Porto Alegre, como Vera Louca e Tomate Maravilha - tendo o trabalho 'Pule pra pegar' premiado em Gramado. Logo após, partiu para os curtas-metragens e, um deles, 'Um Filme Chamado Esfíncter', realizado na Unisinos, foi vencedor no Festival do Livre Olhar, na Casa de Cultura Mário Quintana. Naturalmente, chegou aos longas-metragens.

E, para ele, cada filme é um universo de histórias de conflitos, de amores que surgem e situações. Sempre entusiasmado em falar sobre o trabalho, o cineasta afirma que o set de filmagem o tem levado a lugares muito especiais: já esteve no acervo de arte do Museu do Louvre, em Paris; no Palácio do Planalto, dentro da sala do presidente; no gabinete do governador durante duas noites; e no terraço do Palácio Piratini; no Cristo Redentor; e na Sapucaí, no desfile da Mangueira, que foi campeã. "Você tem a possibilidade de estar vivendo a história. Por exemplo, no dia da morte do Teori Zawaski, eu estava dentro do gabinete do Michel Temer, esperando para filmar, enquanto o Alexandre de Moraes e o presidente da República faziam uma reunião para definir qual seria o futuro do Brasil. Foi muito marcante estar no lugar onde aquilo estava acontecendo, no dia em que cai o avião do cara e o próximo que vai assumir o lugar dele está na outra sala", conta.

Apesar das diversas vantagens em comandar um filme, nem tudo são flores: "É uma façanha fazer um longa. É um processo de vários anos", diz Zeca. 'Legalidade', por exemplo, ficou nove anos em produção. Ele explica que alguns filmes passam pelo processo formal. Outros, como 'Hamlet' e o 'Voo Cego', os quais, mesmo estando há anos em produção, ainda não foram concluídos, são realizados de maneira subversiva, por conta da urgência do tema ou pela necessidade de experimentar. "A câmera é como uma caneta, que é preciso exercitar, senão, perde a mão", explica.

Para o futuro, Zeca pretende seguir fazendo o que mais gosta e sabe: filmes. O profissional assegura que tem projetos para os próximos 10 anos, como um longa sobre Giuseppe Brasanelli, escultor jesuíta que veio para o Rio Grande do Sul no século XVII. A Revolução da Degola e o Sebastianismo também são temas que o interessam. Com uma empolgação jovial, ele afirma que, se conseguir seguir trabalhando e se as engrenagens sistêmicas do Brasil permitirem, continuará fazendo Cinema para sempre. "Não sou, e nem quero ser, uma pessoa realizada, quero ser uma pessoa que está sempre realizando", sentencia.

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