Tiro no pé e uma benesse

Por Flávio Dutra

Sou do tempo em que os governantes em início de mandato ganhavam cem dias de isenção às críticas, depois dos quais tinham necessariamente de mostrar os primeiros resultados de sua administração. Desconheço qual o critério para estabelecer que uma centena de dias seja o prazo adequado para que os projetos comecem a sair do papel e virem programas e políticas de governo, mas, enfim, era a pauta obrigatória da mídia. 

O que observo agora no governo que assume em Brasília que os tais cem dias foram desrespeitados já no primeiro dia de gestão. Não teve lua de mel. É cobrança desde já, não é governo de continuidade, muito pelo contrário, e a polarização que vem marcando as disputas eleitorais e dividindo o país, se refletem na mobilização contrária, até mesmo com episódios radicais como o do domingo retrasado.

A grande mídia, viciada na crítica permanente durante o governo Bolsonaro - que contribuía para isso, sem dúvida - agora precisa satisfazer, por um lado, essa necessidade de cobrança, e, por outro, mostrar que é independente e exerce seu senso crítico, não importando quem são os poderosos do momento.  

O governo Lula padece nesta arrancada porque não consegue uma comunicação uniforme, nem integração imediata. Com seus 37 ministros, representando 12 diferentes partidos, isso fica bem difícil. E o deus Mercado de olho, desconfiado. Haja reunião ministerial para alinhamento!

Aí os bolsonaristas radicais, bando de aloprados, decidem depredar os prédios dos Três Poderes, num simulacro de golpe e entregam ao governo o que ele não estava conseguindo: coesão interna e apoio externo. Um verdadeiro tiro no pé para os vândalos. Mesmo assim, o governo paga um preço pela benesse, pois ela tirou o foco do que estava para ser anunciado nos primeiros dias e trouxe desgaste pela repercussão das prisões em massa, inclusive de crianças e idosos, além do jogo de empurra sobre quem foi mais omisso.

Assim, o capital de boa vontade, tolerância e adesão conquistado, pode se esgotar rapidamente, se a ação governamental não colocar a máquina estatal a funcionar; se não cumprir, de alguma forma, as promessas de campanha, como, por exemplo, um salário mínimo ligeiramente turbinado. Caso contrário, vai precisar de mais de cem dias para mostrar alguma coisa. E a data cabalística, ao invés de uma meta, passa a ser uma arapuca. 

Deixo o aprofundamento da análise para os especialistas, sabendo que, na real, vamos apelar para o chamado distanciamento histórico, a fim de avaliar melhor o que significou, em toda a sua extensão, o 8 de janeiro com seus desdobramentos. Talvez em cem dias se possa ter as devidas respostas.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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