O irresistível amor de todo dia

Não quero. Não posso restar nua, despojada de mim mesma novamente. Assim como descreveu Caio Fernando Abreu no conto "Itinerário", publicado no livro Inventário …

Não quero. Não posso restar nua, despojada de mim mesma novamente. Assim como descreveu Caio Fernando Abreu no conto "Itinerário", publicado no livro Inventário do ir-remediável, não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. E por julgar que não é mais tempo de reconstruir, não sabia se aceitava o chamado para sair no domingo. A voz no telefone sussurrava um convite inocente, um encontro em um shopping qualquer, um carinho trocado, um beijo roubado e o começo daquele arrepio que deixa todo o tesão guardado se desvendar.


No caminho para casa após o almoço, o romantismo dos apaixonados quase me contaminou. Flores nas esquinas, ursinhos nas vitrines das lojas, filas nos restaurantes e cafés. Quanta armadilha. Decidida a não me mostrar outra vez inteira e desprotegida, pensei em adotar algumas alternativas. Convidei minha filha Gabriela para ir ao cinema. Tem um novo filme em pré-estréia chamado Madagascar. Que tal, filha? A resposta foi automática e reforçou que eu teria que ser forte: "Mãe, isso é um desenho, quero ir para casa, estudar e conversar sobre o concurso de top model com meus amigos".


Ao terminar nossa refeição no shopping, um rápido passeio na livraria que Gabriela mais adora já havia me indicado que ela estava disposta a me empurrar para o encontro. Porque, apesar dos seus quase 11 anos, nós compartilhamos muitos segredos numa relação que vai além de mãe e filha, beirando a amizade verdadeira que a diferença de idade permite. E ela percebeu que a chamada no celular tinha mexido comigo. E se eu fazia de tudo para evitar o que seria um momento intenso de prazer entre dois corpos ardentes, ela se empenhava em me incentivar. Menina persistente.


Na livraria, sugeri comprar o livro novo da Ruth Rocha que o colégio dela pediu. Cheia de razão e argumentos, Gabriela lembrou que o livro é para o segundo semestre, que eu estava sem dinheiro, e ela queria mesmo ir para casa cumprir seu roteiro de compromissos. "Se tu tá com vontade de comprar algo, leva aquele do crime do jornalista que tu ainda não conseguiu comprar", tascou-lhe a pequena sorrindo com os olhos claros, referindo-se ao livro "Tragédia da Rua da Praia", do Rafael Guimaraens, que ela sabe estar entre as minhas prioridades.


Técnicas que não deram certo e rumamos para casa. A voz mansa no telefone dizendo que vinha de longe para me ver não me abandonava. Algo me lembrava que não devemos nos arrepender do que não fizemos. Se é para correr o risco do arrependimento, que seja pelo que realizamos. Minha parte madura falava baixinho no meu ouvido que eu não devia adolescer em pleno Dia dos Namorados. E a porção infantil soprava o pó da Terra do Nunca, revelando cenas tórrridas e que me faziam corar e um frio subir pelo corpo só de "imaginar loucuras". Ou será que as porções haviam trocado de personalidade?


Como revelei no último artigo, tenho andado mais preocupada em viver. Só porque alguém um dia não soube que era o sol, a lua, um violão tocando serenata na madrugada e pisou demais nos astros sem distração? Só porque alguém um dia ignorou que estava ganhando meu coração e colocou na estante? Só porque alguém um dia deixou o amor morrer, sem foguete e sem balão, numa festa de São João? As cicatrizes podem parecer muitas, mas estão fechadas o suficiente para lembrar que devemos nos permitir, podemos nos entregar outra vez,  que o desejo de se enrolar num outro corpo é humano e se perder e se encontrar, ou não, quem sabe?


No mesmo livro do Caio, encontrei um pedaço de uma poesia do Carlos Drummond de Andrade que respondeu as minhas dúvidas: "Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita". Quem disse que não se pode ser feliz sozinha? Quem escreveu que só se ama uma vez? Quem tenta impor que o amor não está presente nas pequenas coisas da vida? Quem decretou que não se possa recomeçar? Quem determinou que tudo sempre se repetirá? Quem não sabe que amor é o irremediável remédio nosso de cada dia?

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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