A propaganda da esquerda contra o capitalismo nunca conseguiu ser tão eficaz como a propaganda do capitalismo contra a esquerda. A propaganda capitalista é tão perversa que hoje ainda, como notou o historiador Luís Augusto Farinatti, quando não há mais comunismo, ainda existe anticomunista que não dorme sem olhar embaixo da cama.
Veja, sabemos tudo sobre o dito socialismo real, desde as atitudes mais patéticas dos líderes ao número de mortos. Isso é bom - pra curar todas as ilusões. Mas o mundo está aí mesmo, podre, envenenado, miserável, cada vez mais injusto. E de quem é a culpa? Os capitalistas assobiam e olham pro lado, como se o papo não fosse com eles.
Nada pode travar o crescimento econômico. Não importa se o mundo for pra cucuia. Não importa se esse crescimento seja bom de verdade apenas pra um por cento da população mundial.
Que venha o apocalipse, nós garantimos suas migalhas.
A grande aposta
Não vi esse pessoal que acha que os EUA são o paraíso comentar o filme. É estranho.
O que é a corrupção de alguns políticos brasileiros - sem distinção de partidos, meus caros - comparada com a corrupção do mercado livre americano mancomunado com o governo idem? Qual a diferença entre a justiça brasileira e a justiça americana? A corrupção americana quebrou a economia mundial, recebeu alguns bilhões de dólares - pagos pelos contribuintes - para sanar a crise que ela mesma criou e torrou essa bolsa-empresário em proveito próprio. Ué, não deu cadeia? Não só os criminosos estão livres como continuam fazendo o que sempre fizeram.
O mais hilário ou o mais triste é ver a classe média defendendo a agenda dos muito ricos, na doce ilusão de que defende seus próprios interesses. Bom, talvez defenda. Há quem goste de viver dos farelos que caem da mesa dos patrões. Veja o caso dos cachorros domésticos.
Madame Bovary
"O romance perfeito", segundo Henry James. É verdade. Só falta dizer que meio chatinho.
"A educação sentimental" talvez não seja perfeito. Mas acho muito mais interessante. Como disse o próprio Flaubert, se tivessem lido direito, teriam parado de cometer erros básicos em matéria de política.
Crentes
Os crentes são o bicho mais fácil de enganar. Basta dar a papa de papagaio que estão acostumados a saborear. Quando digo crentes, não falo só dos evangélicos, por supuesto.
O regresso
Eu não estava levando fé, mas me surpreendi: que filmeco, putzgrila! Sabe a briga de saloon nos faroestes antigos? Todo o filme é uma longa briga de saloon contra índios, ursa, franceses, a neve, o vento, a água e, como se não bastasse, contra um peixe e um fígado crus. Pra continuar firme no roteiro, nem o duelo final é dispensado, espichando um suspense que não existe.
Pela metade, me perguntei por que me entediava. Ora, porque não conseguia torcer por ninguém - os personagens são tênues, apenas sombras igualadas pela situação. A exceção é o bandido, mas como não passa de uma caricatura muito exagerada, dificilmente dá pra levar a sério. Pra piorar, a história não flui, cada nova cena parece inventada pra agravar o perigo, daí um arzinho mecânico, peças se encaixando sempre obedientes. Como tudo é exagerado e explícito, esse arzinho mecânico é sublinhado em vermelho.
Essa história, se tivesse um mínimo de verossimilhança, acabaria com as patadas da ursa. Adivinha quantos ossos teriam quebrado? Caso o fulano tivesse sobrevivido, quando a ursa cai em cima dele com seus quinhentos ou seiscentos quilos, sobraria o quê? Seria lindo uma panqueca de Leonardo DiCaprio.
Diz aí: quanto tempo pra hipotermia com todo aquele frio, o cara com a roupa de pele encharcada no rio? E como a pólvora se manteve seca? E como ele anda com o cantil que esqueceu na cova? E onde ele deixou a roupa pra dormir dentro do cavalo morto? Sim, porque de manhã tudo está congelado e a roupa parece tirada do cabide do closet, e não esqueça que ela ainda não está seca.
Claro que não há filme sem erros desse tipo. Mas me vi menos inclinado a deixar pra lá por causa da banca do Iñárritu: quis fugir dos estúdios, quis a coisa real, a floresta, o gelo, o peixe se retorcendo ao ser almoçado. Toda essa trabalheira pra dar um sabor de verdade e aí comete coisas que nem o episódio mais chinfrim do velho seriado do Daniel Boone deixaria passar.
O filme foi baseado numa história real, dizem. O fato de um caçador ter sobrevivido ao ataque de um urso ou ursa e às intempéries é uma coisa. Outra, muito diferente, é você colorir romanticamente esse ataque e o resto com os vícios de Hollywood. Sem falar no moralismo na última facada.