Há 66 anos, nascia a Feira do Livro de Porto Alegre

Por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite, para Coletiva

"Na Feira há um encontro concreto, cotidiano, informal das pessoas com os livros, escritores, literatura, enfim"

(Lya Luft, patronesse em 1996).

   

Há 66 anos, no dia 16 de novembro de 1955, numa quarta-feira chuvosa, às 18 horas, era inaugurada na Praça da Alfândega,, com 14 barracas de madeira, a primeira Feira do Livro de Porto Alegre, sob a liderança do jornalista Say Marques, então, diretor-secretário do extinto Diário de Notícias (1925-1979). 

O discurso de abertura foi proferido pelo secretário de Educação e Cultura Liberato Salzano Vieira da Cunha (1920-1957). Na época, em que este tradicional evento cultural foi criado, estava governando o Rio Grande do Sul o engenheiro civil Ildo Meneghetti (1895-1980), e o prefeito de Porto Alegre era o itaquiense Martim Aranha (1910-1986), que se encontrava no final do seu mandato.

Neste ano de 2020, A 66ª Feira do Livro, a exemplo das comemorações na Semana Farroupilha, ocorrerá, no formato digital, entre os dias 30 de outubro e 15 de novembro, devido à pandemia que, ainda, nos assola. Tendo como o tema Janelas abertas para a Praça, o evento contará, em sua abertura, com a presença da escritora chilena Isabel Allende.

A escolha do primeiro patrono afrodescendente

Outro fato importante, que confere um caráter diferenciado à Feira do Livro de 2020, considerando que este evento ocorre num país em que muitos defendem a ideia da existência da chamada "Democracia Racial", embora as pesquisas comprovem que se trata de uma falácia perpetuada no Brasil, é a escolha do primeiro patrono afrodescendente após tantos anos da criação deste evento. Esta demora em eleger um escritor negro, com certeza, não é aleatória e exige, sim, uma reflexão. 

Os adeptos do mito da "Democracia Racial" se esquecem de que o princípio democrático pressupõe igualdade e oportunidades para todos, assim como a participação ativa nas decisões políticas. A Abolição da Escravatura (1888) não seria um processo inconcluso, como afirmou o historiador, político e jornalista Décio Freitas (1922- 2004), se o ato jurídico fosse complementado por mudanças sociais efetivas, como uma reforma agrária  e a implantação de um sistema educacional amplo e inclusivo.

O mito da Democracia Racial

O golpe de mestre da elite brasileira, do século 19, dá-se com uma abolição de forma legal, porém sem alterar o sistema social do qual era apenas o espelho. A sociedade se adaptou, visando a preservar, sob a aparência jurídica de igualdade de todos perante a lei, a distinção social entre "a Casa Grande e a Senzala".

A obra do atual patrono Jeferson Tenório traz a público estas questões, levando-nos a uma reflexão acerca das múltiplas faces do racismo, como a exclusão e suas consequências, a invisibilidade social e a própria negligência do poder público.

Jeferson Tenório e sua produção literária

Nascido em 1977, no Rio de Janeiro, o futuro escritor Jeferson Tenório se mudou para Porto Alegre, ainda menino, aos 13 anos de idade. Em Porto Alegre, formou-se, em Letras, pela UFRGS. Ao ingressar na universidade curso, ele fez parte da primeira turma do programa de cotas raciais, obtendo, em sua vida acadêmica, o título de mestre em literaturas luso-africanas, quando apresentou a sua dissertação sobre o moçambicano Mia Cout, nascido em 1955, que se tornou um expoente da literatura africana, conquistando, graças à sua importante produção, o Prêmio Camões e o Prêmio Internacional Neustadt de Literatura.

Dando segmento aos seus estudos acadêmicos, Jeferson Tenório obteve o título de doutor em teoria literária pela Escola de Humanidades da PUCRS. O autor, atualmente, é professor de Português e Literatura na rede pública de ensino da nossa Capital. Seus textos já foram adaptados para o teatro, além de seus contos que foram traduzidos para o inglês e o espanhol.  Há 30 anos, ele se encontra estabelecido no Rio Grande do Sul. Estas três décadas já lhe credenciam, diante de suas intensas atividades literárias e educacionais, em nosso Estado, o título de cidadão gaúcho.

O Avesso da Pele - seu recente livro - foi publicado, em agosto de 2020, pela Companhia das Letras, e causou impacto no público leitor. O seu lançamento ocorreu em meio à turbulência que foi causada pelas manifestações de repúdio e indignação  frente às mortes de George Floyd, em Minnesota, nos Estados Unidos, e, no cenário brasileiro, do adolescente João Pedro Mattos, na região metropolitana, do Rio de Janeiro. Em seu livro, a personagem central, também, é assassinada por policiais, tendo como força motriz, neste ato insano, o preconceito racial.

O primeiro Romance

Jeferson Tenório estreou, como romancista, com a obra O Beijo na Parede, lançada em 2013, pela Editora Sulina. O romance se trata de um menino afrodescendente que é forçado a abandonar o Rio de Janeiro - sua cidade natal - em companhia do seu pai, que era gaúcho, passando a viver em Porto Alegre. Na sequência, João, com 11 anos de idade, passa a acumular, em sua vida, uma sucessão de abandonos. A mãe havia falecido no Rio de Janeiro e seu pai, em Porto Alegre. Sua vida é recheada de percalços: é adotado, de forma relativa, por uma prostituta (que é espancada pelo seu cafetão), e convive, em um cortiço, com um travesti e dois idosos próximos da morte. Este local, de forma fictícia, estaria localizado entre a Rua Voluntários da Pátria e a Avenida Farrapos. João, na realidade, pertence ao universo da rua, identificando-se com outros seres humanos, que, em seu cotidiano, vivenciam os mesmos dramas, como a fome, o abandono, a exclusão social e a prostituição.

Com a publicação deste livro, Jeferson Tenório conquistou o Prêmio de Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores. No ano 2018, esta importante publicação entrou para o Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação, passando a ser distribuída para as escolas públicas, para alunos do 8º e 9º ano do Ensino Fundamental e alunos do Ensino Médio. Esta obra já atingiu mais de 60 mil exemplares distribuídos neste programa. 

Em 2018, o autor lançou o seu segundo romance, cujo título é Estela sem Deus, publicado pela editora Zouk. Com certeza, o reconhecimento, da obra do escritor Jeferson Tenório e a sua condição honrosa de patrono da nossa Feira do Livro de 2020, é bastante significativo neste processo, em construção, de uma sociedade mais justa, fraterna e plural.

Ao extrapolar os limites regional e nacional, A Feira do Livro de Porto Alegre já se tornou conhecida no âmbito internacional. Na América Latina, constitui-se no maior evento do gênero, que se realiza a céu aberto. No ano de 2005, graças à sua importância, recebeu a Medalha da Ordem do Mérito Cultural, concedida pela Presidência da República e pelo Ministério da Cultura. Em 2010, ela foi considerada patrimônio imaterial de cunho cultural, reconhecido pela Secretaria Municipal da Cultura. Há 66 anos, ocorre este encontro especial do leitor com seu autor favorito, sendo motivo de orgulho para os gaúchos de todas as querências.

 

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador, articulista e responsável pelo núcleo de pesquisa do MuseCom.

 

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