Desfecho é a palavra de ordem para repórteres que cobriram a Kiss em 2013

Cristine Gallisa, Luciane Kohlmann e Paulo Roberto Tavares contam como é acompanhar a pauta da tragédia há quase nove anos

Cristine Gallisa, Luciane Kohlmann e Paulo Roberto Tavares cobrem o júri da Boate Kiss - Divulgação/Coletiva.net

Muitos jornalistas presentes no Foro Central I de Porto Alegre para o julgamento do caso da Boate Kiss acompanham o caso desde 2013, quando do incêndio em Santa Maria. Entre eles, profissionais que entendem o momento como um desfecho do que começou há quase nove anos. "É um momento muito marcante para todos os jornalistas que estão aqui. É dar uma conclusão para essa história que marcou e manchou a história do Rio Grande do Sul", disse a repórter do SBT Luciane Kohlmann em entrevista ao Coletiva.net e Coletiva.rádio.

O mesmo sente a repórter da RBS TV Cristine Gallisa, que chegou em Santa Maria uma semana após a tragédia e por lá permaneceu por mais de um mês. Desde então, acompanhou a investigação, a entrega do inquérito ao Ministério Público, depois a entrega da denúncia à Justiça, que aceitou e iniciou o processo. "É a expectativa de um desfecho, pois nove anos é um tempo imenso de espera. Foi uma tragédia que percorreu o mundo. Então, impactou nossas vidas profissionais", disse ela.

Paulo Roberto Tavares, do Correio do Povo, não estava entre os credenciados do veículo em primeiro momento, mas pediu para estar presente, já que, ao lado do colega Danton Júnior, chegaram a Santa Maria ainda na madrugada daquele 27 de janeiro de 2013. "Após sabermos como seria o revezamento, eu me ofereci para vir todos os dias ao Foro. Queria estar aqui", contou.

Lembranças dolorosas

Quando o repórter do CP chegou em Santa Maria, a cena se mostrou devastadora: bombeiros estavam retirando corpos do banheiro da boate Kiss, local onde aconteceram boa parte das mortes. De lá, partiu para o Ginásio C do Centro Desportivo Municipal (CDM), conhecido como Farrezão, para onde estavam levando as vítimas fatais e, posteriormente, foi realizado o velório coletivo. Antes de contar esses momentos, Tavares precisou de alguns segundos para se recompor, pois se emocionou ao relembrar. "Ficamos duas semanas lá em Santa Maria", resumiu.

Cristine chegou na cidade na tragédia uma semana depois e lá permaneceu por cerca de um mês, acompanhando diversos desdobramentos, como as vigílias que as famílias faziam com frequência. A jornalista observou que conversou com muitas famílias naquele tempo e, durante o julgamento, reencontrou muitas delas. "Se esse júri tivesse acontecido em Santa Maria, teria ainda mais gente aqui", garantiu ela, completando que o que mais impacta neste momento é ver mais uma vez a dor dessas famílias.

Luciano, por sua vez, não esteve em Santa Maria quando do ocorrido, mas recorda de ter começado a trabalhar, de Porto Alegre, muito cedo na redação. Foi para a Redenção, onde desciam helicópteros durante o dia todo, trazendo vítimas transferidas para hospital da Capital. "Passei praticamente o dia todo de pé, comendo areia - já que toda vez que pousava um helicóptero, levantava muita poeira (o local era uma pista de atletismo e uma quadra de futebol)", recordou, destacando ainda a quantidade de ambulâncias que por lá circularam. 

Emoções à flor da pele

Todos são unânimes: nenhuma dor é comparável à das famílias. Isso é fato. O que nem todo mundo sabe é que jornalistas também sentem as perdas, não seguram a emoção e foram também impactados pela Kiss. É o que defende Luciane, que está no julgamento para a cobertura nacional do SBT. Ela pontuou que "de alguma forma machucou um pouco todos os gaúchos, os jornalistas se envolviam demais, a gente sofria junto". De Porto Alegre, a repórter cobriu coletivas de imprensa de clínicas e hospitais, quando estas davam os boletins dos pacientes. "E é muito emocionante pensar que vários desses nomes estão aqui hoje, como sobreviventes, contando histórias e pedindo justiça."

Muito emocionado em vários momentos da conversa com Coletiva.net e Coletiva.rádio, Tavares conseguiu dizer: "A gente tenta engolir a emoção e seguir em frente. Mas volta e meia recordamos a cobertura, encontramos parentes de vítimas que conversamos na época. É difícil", resumiu novamente. Cristine salientou um momento impactante para ela nesta cobertura atual: o cartaz colocado no portão de entrada do Foro Central I, com todas as fotos das vítimas. "Começo a olhar para aquelas carinhas e pensar que todos eles tiveram sua vida interrompida. Tudo isso faz voltar muito do que sentimos lá atrás, durante aquele tempo da cobertura."

O privilégio de voltar à pauta

Os três repórteres concordam que acompanhar esse que é considerado o maior júri da história do Judiciário gaúcho é um privilégio. "É um momento muito marcante para todos os jornalistas que estão aqui", garante Luciane, ao complementar: "Como jornalista, é muito gratificante poder acompanhar isso tudo. Por mais que seja cansativo, que a gente baixe a cabeça, trabalhe, temos uma energia, um gás para acompanhar, porque sabemos da importância, seja pelo registro, seja para que outras tragédias como essa não se repitam". 

Este não é o primeiro júri que Tavares acompanha, mas ele garante que com tamanha intensidade - seja pela pauta, seja pelo tempo de duração - ainda não tinha visto. "Profissionalmente, é uma oportunidade válida, pois sempre há algo para se aprender, e tenho aprendido muito aqui. Isso é muito interessante." Por conta da emoção dele, Coletiva.net questionou-o sobre o que faz para engolir isso tudo e tocar a vida: "Faço o que fiz quando retornei de Santa Maria: tudo ficou lá. Ou seja, quando saio daqui, a pauta acabou. Procuro não pensar".

Para Cristine, é interessante ver que há um hiato de nove anos desde a tragédia, "e a vida foi andando para muita gente, outras notícias vieram, outras coisas aconteceram". Nas palavras dela, é como se o tempo tivesse parado e há 10 dias eles revivem tudo. "Lá atrás, havia expectativa de que o caso tivesse um fim rápido, mas não foi o que aconteceu. Tudo que ouvimos é que essas famílias precisam de uma resposta. O desejo de todos nós é que essa tragédia sirva de exemplo, para que não aconteça nada parecido novamente", destacou.

Deletado da memória

Mesmo não estando em Santa Maria na ocasião do incêndio, Luciane Kohlmann foi até a cidade em diversas oportunidades. Em 2017, entrou na boate, quando ainda não haviam feito os buracos no teto e o breu era total. Sentimentos diversos com a experiência, alguns muito ruins, o cheiro forte de queimado, cenário preservado. Ela não permaneceu por muito tempo no local, não lhe fez bem. 

O interessante deste relato é que essa situação toda não estava fresca na memória, ao contrário. Só se lembrou disso quando viu as fotos recentes que fizeram de lá. "O jornalista tem por característica focar tanto na pauta, que fica aquém da emoção. Quando vi as imagens recentes, percebi que tinha deletado da memória aquela experiência, de tão mal que me fez."

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