Coopítulo 77 - Zélia e os tupamaros (II)

Por José Antonio Vieira da Cunha

Segue hoje a narrativa da Zélia Leal Adghirni, a associada e colaboradora da Cooperativa dos Jornalistas, sobre o episódio que vivenciou com os Tupamaros em Paris e que rendeu uma reportagem reveladora sobre o movimento guerrilheiro marxista-leninista uruguaio que contestava o regime militar nos anos 70. A primeira parte está aqui, caso você tenha perdido a oportunidade de conhecer o rico depoimento feito por ela.

A reportagem foi publicada na edição de novembro de 1978 do Coojornal, com a expressão Ex-Tupamaros em letras garrafais, acima da manchete reveladora: Depoimento Exclusivo: Acabou a Guerrilha! Estourou como uma bomba e teve ampla repercussão nos jornais brasileiros e certamente do Conesul. O relato de Zélia continua:

"O mistério que me ronda até hoje é descobrir quem vazou para os serviços secretos no Brasil este encontro tão privado. Conforme viríamos a descobrir mais tarde, uma fonte desconhecida teria narrado à polícia política brasileira este encontro com quatro líderes Tupamaros em minha casa. E a narrativa era absolutamente mentirosa. A única verdade é que o encontro aconteceu e que a entrevista era real.

Ao viajar para o Brasil em agosto de 1979 para apresentar meu marido e meu filho recém-nascido à minha família, fui avisada justamente pelos meus colegas do Coojornal que havia um pedido de busca do SNI (015-B2/79), no qual constava meu nome, na época Zelia Leal. Como havia me casado há pouco tempo e mudado de sobrenome para Adghirni, deve ter havido uma confusão no Rio de Janeiro onde desembarquei com meu bebê de dois meses. Eu era agora Zelia Adghirni, não Zélia Leal, e, na visão deles, aquela senhora de terninho com um bebê nos braços não poderia ser a mesma jornalista subversiva colaboradora dos Tupamaros.

O mais incrível é que meu marido, marroquino, não viajou comigo no mesmo voo para o Brasil. Ele entrou por Montevidéu, por ser um voo mais barato mas também porque tinha uma missão. Encontrar uma pessoa a quem passaria o recado de um amigo Tupamaro, dizendo que "fulano de tal" estava bem e mandava abraço aos pais que, pensava, nunca mais veria. Só que, ao desembarcar no aeroporto, meu marido se apavorou ao ver o rosto deste amigo entre tantos outros em cartazes com os anúncios de "procurado vivo ou morto". E, para piorar a situação, ao passar pela alfândega foi detido pelas autoridades uruguaias. Motivo: não tinha visto de entrada no país, uma exigência para cidadãos do Marrocos. Foi revistado nos mínimos detalhes e todos os livros que trazia foram confiscados. Enquanto as autoridades entravam em contato com as autoridades marroquinas, eu, em Porto Alegre onde chegara na véspera, entrava em pânico com a demora. Naquele tempo, é óbvio, não existia celular e ele não tinha como me avisar. Finalmente, conseguiu fazer uma ligação para minha família e explicou que estava detido por um problema de visto. Algumas horas mais tarde, desembarcava no aeroporto Salgado Filho. Sem passar a mensagem do amigo Tupamaro para os pais.

Estava ainda curtindo as férias com meus pais quando o colega Osmar Trindade me chamou e me disse para deixar o Brasil imediatamente. Motivo: a cópia de um documento que tinha em mãos acusando o Coojornal de colaborar e ser financiado pelos Tupamaros. Por sorte, meu bilhete de retorno estava marcado para o dia seguinte.

De volta à França, este episódio foi publicado na revista Veja, com minha foto. Era acusada de trabalhar para os Tupamaros. Imediatamente, o Coojornal e os Sindicatos dos Jornalistas tomaram as devidas providências provando as mentiras do relatório do SNI.

Era 1979. Falava-se em abertura, os exilados estavam retornando, mas o perigo continuava vivo. Por um golpe de sorte, eu e meu bebê (hoje jornalista em Paris) não desaparecemos num buraco sem fundo, sem deixar vestígio, nas trevas da ditadura."

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem quatro netos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários