Luís Augusto Fischer: Para além de um Porto-Alegrês
De característica textual crítica, a ironia mostra o cotidiano da sociedade, por meio de humor sarcástico e cheio de desconfortos
Estamos no ano de 1970, a cidade de Porto Alegre está em transformação. É uma época marcada pela modernização acelerada, contraditória, desigual e excludente dos governos militares. A capital passa pela substituição dos bondes, que dão espaço aos transportes rodoviários, e os recintos rurais se transformaram em estruturas de viadutos e túneis. Esse parece ser um prato cheio para quem está com a mente criativa e disposta a contar boas histórias. O professor, escritor e cronista Luís Augusto Fischer viveu o auge da adolescência nesta época, em uma cidade repleta de peculiaridades.
Ali, formou-se um porto-alegrense nato, carregado de observações e histórias boas para contar e levar a quem quisesse ouvir. Em suas crônicas, a linguagem coloquial é repleta de gírias, o que dá aos textos um caráter mais popular. A crítica de costumes à sociedade é perceptível por meio de ironia, que mostra o cotidiano da sociedade, através de humor sarcástico e cheio de desconfortos. Um crítico do pós-modernismo - movimento desenvolvido por meio da filosofia, das artes e da arquitetura. Compreendido ou não, de fato, a vida de Luís Augusto Fischer gerou a ele uma série de polêmicas, mas sempre no âmbito das boas ideias e dos debates intelectuais saudáveis, ambiente ideal para os leitores.
Talvez, a melhor homenagem que se possa fazer a Luís Augusto é dizer que é oriundo da boa literatura brasileira. Como cronista, escreveu para a Folha de São Paulo, ABC Domingo, de Novo Hamburgo, revistas Bravo, Superinteressante e Zero Hora. Em 2019, fundou a revista digital Parêntese, veículo que integra o Matinal Jornalismo. Na literatura, tem livros publicados de contos, ensaios e teoria literária. Seus destaques são o 'Dicionário de Porto-Alegrês' e o 'Dicionário de Palavras e Expressões Estrangeiras'. Em 2005, publicou o primeiro texto de ficção mais longo, a novela 'Quatro Negros'. Em 2013, foi eleito Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. "Nessa época da feira, me paravam até no supermercado", lembra, aos risos.
Vida acadêmica
Quem ouve a trajetória de Luís Augusto Fischer pode dizer que escrever crônicas são os momentos de maior prazer profissional, afinal de contas, no trabalho de doutorado, realizou uma análise em cima das crônicas de Nelson Rodrigues, um fio condutor no estilo textual dele. No entanto, essa é apenas uma de suas atribuições, isso porque, neste ano, ele completa 45 anos como professor e 40 deles como integrante do Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). "Já tive tantos momentos de satisfação, mas o que eu mais posso dizer é que ser professor me dá muito orgulho, ver um aluno com os olhos brilhando a fim de aprender, isso é satisfatório", diz Luís.
A profissão escolhida pode ter sido, sim, por influência do pai, pelo menos é o que ele acredita. Mas, apesar disso, o gosto pela literatura surgiu desde cedo, uma vez que a influência dos livros sempre fez parte da sua vida. Ainda jovem, tentou migrar para outras áreas de atuação como, por exemplo, a Geologia, primeiro vestibular na Ufrgs. "E até que foi legal, mas não era bem aquilo que eu gostaria de levar como profissão."
Naquela época, ainda se podia usar a mesma matrícula para dois cursos. "Inscrevi-me também em História, mas desisti quase no final", conta. As letras haviam pego o professor de jeito e foi ali que percebeu que precisava exercer a função de educador. Anos depois, já formado, prestou concurso para a mesma Ufrgs, onde leciona desde 1985. Pela mesma instituição de ensino, fez mestrado e teve a oportunidade de realizar pesquisas acadêmicas em diversos países. "É o que eu gosto de fazer. Inclusive, preciso dar espaço aos mais jovens que estão cheios de gás", brinca o professor e escritor.
Recordações
Nascido em 1958, na cidade de Novo Hamburgo, Luís tinha apenas um ano quando se mudou para Porto Alegre. Inicialmente, a família Fischer se instalou no Quarto Distrito, no qual viveu boa parte da sua infância. Mas existe um lugar onde se encontram as recordações de maior afeto. Voltamos aos anos 1970, quando a turma de amigos decidia qual seria o melhor nome para se dar ao time de futebol do bairro. E lá estava o Rosário, equipe carinhosamente batizada, em razão do lendário Cine Rosário, localizado na avenida Benjamin Constant, no bairro Floresta, em Porto Alegre.
A época e o lugar formam uma das melhores lembranças da juventude do professor. De família de origem germânica, Luís passou boa parte da sua juventude ligado aos costumes do bairro e do seu núcleo, que mantinha proximidade com a igreja católica, em que foi militante da esquerda cristã, que tem por característica ajudar e incentivar os moradores do bairro. Porto Alegre ainda vivia um ambiente rural, as brincadeiras de infância eram os jogos de bolita, peão, subidas em árvores, mas o que mais gostava eram as partidas de futebol. "Ainda se podia fazer coisas na rua até tarde", comenta.
A casa dos avós, em São Sebastião do Caí, também move recordações ao lado dos irmãos Ana Rosa Fischer, Maria Isabel Fischer e o mais novo, já falecido, Sérgio Fischer. Em casa, a mãe, dona Zélia Maria Fischer, tinha de manter as rédeas da turma, afinal de contas, eram jovens cheios de energia. Uma infância de muito amor e ensino, sobretudo em se tratando de leitura. A casa mantinha o costume dos livros por toda a parte, como incentivo. O pai, Bruno Inácio Fischer, era professor, estudou com jesuítas e, durante o dia, dava aula de Latim e Língua Portuguesa. Aliás, a fruta não cai longe do pé.
Uma viagem a Buenos Aires
A cidade de Porto Alegre é inspiração para diversos gêneros da Arte, que podem levar um pouco da filosofia da capital gaúcha aos mais diversos pontos do mundo. O lugar que "tem um jeito legal" é destaque pelo seu pôr do sol, parques, ruas, bairros e mais uma série de elementos que a compõem. Mas quem teve a brilhante ideia de mostrar a maneira que se fala dentro da cidade? O autor dessa obra é Luís Augusto Fischer e o seu famoso 'Dicionário de Porto-Alegrês". Mas essa história, acreditem, se inicia em Buenos Aires, na Argentina.
Em 1982, fez uma viagem para a capital vizinha, junto de um amigo e professor de Espanhol. O objetivo da dupla, naquela ocasião, era construir uma proximidade com os colégios jesuítas da região, para estabelecer conexões e metodologias de ensino. Em uma de suas saídas pela cidade, foram em uma livraria e um dos livros chamou atenção de Fischer, pois "era um pequeno dicionário, com uma capa charmosa". Ele se chamava 'Mataburro Lunfa', um exemplar da gíria portenha.
Ainda na livraria, ao apanhar a obra, uma mulher se aproximou de Luís e perguntou a ele se havia gostado do que estava em mãos. Ele respondeu a ela que sim e que gostaria de levá-lo. Ela, então, apresentou-se como Rosa Maria Vacario, proprietária da livraria em questão e autora da publicação. Os dois trocaram ideias e ele pôde entender como foi o processo de análise e produção. "Foi ali que percebi que precisava fazer algo semelhante, para contar sobre as gírias de Porto Alegre", explica.
Quando começou a escrever, conta que passou a anotar expressões na parte de trás de talões de cheques, notas fiscais e tudo que poderia comportar escritas, ou seja, qualquer tipo de papel. Ao chegar em casa, colocava as anotações em uma caixa de sapatos, para, futuramente, resolver o que faria com elas. "Depois, deu muito trabalho, uma vez que, ao transferir essas informações para a máquina de escrever, eu tinha que colocar em ordem alfabética, pois não havia computadores que fizessem este tipo de trabalho."
No entanto, o objetivo do livro não foi somente traduzir as gírias, pois, na visão do professor, isso ficaria pobre em relação ao potencial que aquela ideia teria. Então, além da tradução natural das palavras, o livro tem o intuito de contar pequenas histórias, não apenas para colocar a cidade no mapa do Brasil, mas também para revelar as raízes que se expressam em um linguajar característico, consolidado ao longo de gerações. Na Feira do Livro de 1999, foi o livro mais vendido daquela edição. Nos 250 anos da cidade de Porto Alegre, foi lançada uma reedição, com novas revisões e atualizações de termos.
Polêmicas por escrito
Por conta de sua escrita crítica e ácida, Luís protagonizou algumas polêmicas em sua carreira, as mais famosas com Juremir Machado da Silva e Zé Pedro Goulart. Com o primeiro, a história começa nas avaliações que Fischer fazia em relação às críticas ao pós-modernismo, o que, por sua vez, segundo o professor, Juremir fazia deboches em seus espaços, por achar desnecessário o desprezo que tinha pelo tema. "Por bons anos nos alfinetamos em artigos, cada um dava a sua resposta ao outro, com muita classe e, muitas vezes, sem citar os nomes", conta. "Hoje, somos muito amigos e lembramos muito daquela época", complementa.
A discussão se encerrou e terminou em um debate entre os dois, quando ambos ainda não se conheciam pessoalmente. Eles foram convidados para participar de uma mesa-redonda em uma rádio universitária de Porto Alegre. "Eu só pensava: 'Meu Deus, se ele for grande, eu vou apanhar'. Mas, quando vi a sua altura, disse: 'Ah, posso levar essa com tranquilidade'", relata, aos risos. Na mesma ocasião, o professor disse que Juremir tratou logo de descontrair a situação e, na primeira pergunta que foi feita sobre a polêmica, ele disse: "Quero dizer que concordo com tudo que o Luís escreveu". "Ali ele jogou sujo demais comigo", brinca o escritor.
Já a segunda, com Zé Pedro, a polêmica não foi tão diferente. O cronista e professor assinou uma crítica pesada ao filme recém-lançado na época, de Quentin Tarantino, o 'Pulp Fiction'. No texto, ele trata sobre a violência e todos os elementos exagerados que a obra ilustrou nas telas. "Aí, o sujeito vai ver o filme, desse Quentin Tarantino, e toma um, aliás, alguns socos na boca do estômago", escreveu em um dos trechos. Por sua vez, Zé Pedro não gostou das críticas e escreveu um texto endereçado a Luís: "Eu aqui trago meu depoimento como um daqueles que entenderam Pulp Fiction".
Entre réplicas e tréplicas, foram quase 10 conteúdos produzidos por ambos, um falando sobre a análise do outro. Contudo, a editora de Zero Hora na época, Cláudia Laitano, convidou os dois para publicarem a opinião final em uma página especial do veículo. "Ela foi genial e quem ganhou foi o público, que teve a discussão publicada, além de poderem conferir os dois pontos de vista", diz Luís.
Ao lado da família
Com uma trajetória repleta de histórias, não haveria espaço para se contar tudo em um texto. Entretanto, em mais de 40 anos de carreira, Luís Augusto Fischer acredita ser uma pessoa realizada. Além disso, afirma ser um homem de sorte, em relação à esposa e aos filhos. Ele é casado com a tradutora Júlia da Rosa Simões. A parceria no casamento deu vida ao casal de adolescentes, Benjamim, de 17 anos, e Dora, de 14. "Muitos podem não achar, mas tive o privilégio de ser pai mais velho, pois, hoje, eu posso aproveitar ao máximo os meu filhos, sem ter que enfrentar os desafios que tive na juventude."
Os próximos anos de Luís serão dedicados ainda mais à família. O objetivo não é deixar a academia e nem a pesquisa, mas diminuir gradativamente. "Me vejo ainda como professor, talvez aposentado", projeta. Sobre os próximos passos, pretende também lançar, pelo menos, mais três livros. O maior desejo, para o escritor, é que a Matinal e a Parêntese se consolidem ainda mais. "É um projeto muito legal de troca de ideias, uma arena pública de debates inteligentes, ainda mais para que milhares de pessoas tivessem acesso aos conteúdos que estão cada vez melhores", finaliza.