Anna com dois "n"

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"No tempo em que havia ruas, 

ao fim da tarde, era a hora de regressar. 

E a rua entrava conosco em casa". 

Mia Couto.

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Diziam que éramos meninos de família - comportados e bem educados. Na verdade, escondíamos algumas travessuras que aprontávamos longe de casa. Começamos assoviando para as meninas que passeavam pela rua de braços dados. Elas bem     que gostavam dos assovios, mas faziam de conta que não ouviam. Até a vez que noto uma das meninas, de tranças e olhos claros, não se aguentar e abrir um sorriso de felicidade.

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Era o tempo em que moças e moçoilas de famílias da Ramiro Barcelos e dos judeus ortodoxos do Bom Fim, não saiam à rua sòzinhas. Até mesmo as idas e vindas ao colégio deviam ser acompanhadas pelo pai ou por uma tia toda vestida de preto. No entanto, aos domingos a vida ficava mais leve e as meninas saíam em dupla para um passeio pelo bairro - mas precisavam voltar para casa antes de escurecer. E sempre usando o mesmo figurino - blusas abotoadas até o pescoço e saias abaixo dos joelhos. Mas eu não conseguia esquecer o sorriso e os olhos claros da menina que usava a blusa desabotoada. Era pouco, mas aquilo me deixou animado e tentei descobrir seu nome e onde morava. Os guris da esquina, que sabiam mais do que eu, assopraram - a moça se chamava Anna e morava no alto da Castro Alves. Um deles, o David, filho da Dona Bertha e um judeuzinho bastante metido, deu uma risadinha marota:

"- Toma cuidado, é Anna com dois "n"..."

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Aquilo me intrigou ainda mais e mudei o caminho de volta do ginásio, passando pela Castro Alves, na esperança de rever a moça com dois "n" no nome. Não vi nem sinal dela, mas passei a prestar atenção a um sobrado de janelas verdes, onde alguém tocava piano. O suficiente para incendiar meus sonhos - até imaginava minha musa tocando românticas sonatas de Chopin. 

Então chega novembro e fui estudar para as provas de final de ano. Depois veio o Natal, a festa dos Reis Magos e férias na fazenda. 

Por um bom tempo, esqueci Anna e sua blusa desabotoada. Até  o domingo em que subi pela Castro Alves, ouvi tocar piano no sobrado de janelas verdes. Mas não era uma sonata de Chopin, nem a Anna com dois "n".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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