O eremita e o cervejeiro

Por José Antônio Moraes de Oliveira

A rua é pequena em extensão - pode-se percorrê-la em poucos minutos. Mas, como tantas outras do centro de Lisboa, a Rua das Portas de Santo Antão esconde um riquíssimo acervo em significados e estórias. Percorrê-la é viajar pela ancestralidade lusitana. Ali, caminha-se entre opulências do passado e decadências da modernidade. Ruínas de prédios outrora magníficos ao lado de tabernas antigas e restaurantes gourmet. A cada passo, surge um contraste entre o velho e o novo. Da antiga cervejaria Solmar ainda se vê um letreiro neon pós-modernista. Mais adiante, está o tradicional Palace Club, de 1920, em seu granito rosa manchado pelo tempo. Não longe, o novíssimo e movimentado Hard Rock Café.

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A Rua das Portas de Santo Antão é uma das mais antigas de Lisboa. Remonta à época medieval e seu nome registra que ali existia uma das portas de entrada da cidade, na Muralha Fernandina, e que foi demolida em 1727. Em 1911, os republicanos tentaram rebatizar a rua, mas Santo Antão foi mais forte e seu nome permanece até hoje nas placas de mármore branco. Contrariando o exemplo do patrono, um eremita e asceta do século II, a Portas de Santo Antão guarda patrimônios da bela época, como o antigo Coliseu e o Palace Club (atualmente, Associação Comercial).

E por ali ainda resistem verdadeiros marcos do antigo charme de Lisboa, como o icônico Restaurante Gambrinus (no mesmo local desde 1936) e duas tabernas de ginginha, outra autêntica instituição lisboeta: a Ginjinha sem Rival, no nº 7, fundada em 1890, e a Ginjinha Popular, no nº 61, também do século XIX.

Sugere-se uma flânerie, a começar pela Praça do Rossio, no Largo de São Domingos, junto ao Teatro D. Maria II. Ali se encontra o memorial de uma tragédia ocorrida em 1506. No dia 19 de abril, 10 anos depois do édito de expulsão de judeus e mouros por D. Manuel I, uma multidão em fúria matou centenas de judeus, acusados de serem a causa dos males que então atingiam a cidade, como seca, fome e peste. Paradoxalmente, no local vê-se um mural com a inscrição 'Lisboa, cidade da tolerância' em 34 idiomas.

Em suas origens, a Rua das Portas de Santo Antão sediava significativas instituições do Reino de Portugal: o Tribunal da Santa Inquisição, criado em 1571, e o Palácio Imperial dos Estaus, erguido por D. Pedro para albergar monarcas e embaixadores estrangeiros. O palácio foi danificado no terremoto de 1755 e totalmente destruído em um incêndio em 1836. No mesmo local, foi construído o Teatro D. Maria II, um marco do Rossio.

Do lado direito da rua, o Palácio Almada de 1467, é conhecido como um exemplo da arquitetura seiscentista. O visitante pode conhecer os belos painéis dos séculos XVII e XVIII, de Gabriel del Barco, o artista barroco, conhecido por introduzir várias tonalidades de azul na azulejaria portuguesa.

O flâneur deve fazer uma pausa diante da discreta porta sob o número 23. Ao entrar no Restaurante Gambrinus, logo se nota a decoração, que mistura arte portuguesa, madeiras exóticas e porcelanas da Companhia das Índias. Ao ser aberto em 1936, tomou o nome de Gambrinus, rei da Flandres e da Brabante, patrono dos cervejeiros e tema dos belos vitrais que adornam o salão principal. Nas mesas deste mítico restaurante já almoçaram e jantaram celebridades de várias gerações. Alguns pratos estão no cardápio há 30 anos ou mais, pois os clientes fiéis não aceitam mudanças.

Na esquina com a Rua do Jardim do Regedor, existe um edifício que, até 1928, sediou um dos clubes de guerra mais afamados da Europa - o Bristol Club. Era conhecido pela ousada arquitetura modernista: portas giratórias, vitrais art-noveau, corrimãos e cinzeiros de parede em bronze, além de painéis decorativos de impressionistas franceses.

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Alguns passos adiante, no nº 96, o Coliseu dos Recreios, conhecido por Coliseu de Lisboa. Foi inaugurado em 1890 com pompa e circunstância, dada a novidade da grande cúpula em ferro, importada da Alemanha e que causou furor na época. Os jornais registraram:

"Trata-se da primeira vez que os lisboetas assistem à elevação de uma estrutura de ferro importada intacta, com 25 metros de raio, proporções nunca antes experimentadas na cidade."

Quase em frente ao Coliseu, continua o desfile de heranças culturais: o Teatro Politeama, inaugurado em 1913, um edifício com inspiração nos teatros de boulevard. Seu grande janelão de ferro, com as inscrições 'Música' e 'Comédia' prometia o melhor do teatro de variedades de Paris. A partir dali, a nostalgia fica mais forte: pouco resta da antiga cervejaria Solmar e do Ateneu Comercial, que foi um marco em cultura e educação. Mais adiante, uma passagem liga a Rua das Portas de Santo Antão ao Pátio do Tronco, onde existia a Cadeia Municipal do Tronco. Em 1552, o poeta Luís Vaz de Camões envolveu-se numa briga de rua e acabou preso nessa cadeia.

Chegando ao final da caminhada, no Largo da Anunciada, mais vivências dos tempos: o Elevador do Lavra é o funicular mais antigo de Lisboa. Ao lado, a Leitaria da Anunciada, conhecida pelos azulejos da fachada com vacas leiteiras. Antigamente era chamada Vacaria Andrade e, dali saiam vacas de leite, acompanhadas pelos leiteiros, para serem ordenhadas à porta das casas.

Para completar, o contraste da modernidade entre ruínas - o Hard Rock Café veio fazer companhia à Champanheria do Largo e ao sofisticado restaurante Solar dos Presuntos.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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