Diversidade e Comunicação: Patrícia Carneiro contra o racismo
Publicitária é a articulista do dia em Coletiva.net e conversou sobre preconceito com Luan Pires
Gostaria que você se apresentasse do jeito que achar mais pertinente para esse espaço e contasse as tuas primeiras percepções quando se deparou com a vivência do que é diversidade e inclusão, ou a falta dela....
Sou uma mulher negra na Comunicação. A gente vive num País altamente racista. Comecei a me questionar sobre diversidade e inclusão desde cedo, principalmente quando cheguei na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e percebi que só tinha eu e mais uma menina negra, as duas vindas de escolas públicas, contrastando com o restante da turma formada por pessoas brancas, vindas de escolas particulares. Isso se acentuou de acordo com a minha ascensão profissional. Eu sentia que era diferente, que não era um corpo dominante dentro das estruturas que eu frequentava.
É uma quebra de bolhas....
Total. E sabe o que mais? Todo preto no Brasil tem a ilusão de que se tiver dinheiro, ele não vai sofrer racismo. Isso é mentira. Uma vez, cheguei como convidada num jantar em Brasília, e uma mulher me entregou seu casaco pedindo para eu guardar. Eu deixei ele cair no chão e expliquei que eu era tão convidada quanto ela e todas as outras pessoas.
Essa questão de entrar num ambiente e já ser um ato de resistência é uma coisa que eu sendo um gay branco não vivencio. Todos os entrevistados negros trouxeram muito isso de que ocupar um espaço já é um ato de estar em resistência...
O racismo no Brasil é diferente porque ele é pela cor da pele. Nos Estados Unidos é pela cor da pele e também pela origem. As pessoas daqui só sentem o que sentimos quando vão para lá e são tratadas como imigrantes. Elas são olhadas como latinas e, por isso, os americanos transparecem o pensamento de que a presença não é bem-vinda. Exatamente como o negro vivencia ainda hoje no Brasil.
Uma herança histórica, né?
Exatamente. A gente teve 534 anos de Brasil. Apenas 134 foi de liberdade para os negros, sendo que a assinatura da Lei Áurea foi diferente do que aconteceu em outros países: ela não permitia que essas pessoas tivessem educação ou posse de terra, por exemplo. Uma liberdade já nascida do não-espaço e não-existência social. Eu sou o sucesso da minha impossibilidade.
Que frase forte. Me fala mais sobre isso?
Olha, na minha trajetória, existiu aquela coisa de pessoas brancas ganharem mais oportunidade de ascensão, sem falar que me era impelido um embranquecimento da minha identidade. Eu alisava os cabelos para ir em reuniões com os clientes. Cobravam-me uma postura de diretora... O que é uma postura de diretora? Mais do que ser profissional, respeitosa, eu trazia resultado! O que meu cabelo tinha a ver com isso? Por ser preta, ocorre uma invisibilidade do mercado. Por exemplo, eu participei da fundação do Grupo de Planejamento do Rio Grande do Sul, pensando na importância de um projeto que servia para valorizar nosso segmento. Mas, chegou um momento em que eu me sentia uma Ferrari estacionada por causa da invisibilidade negra aqui. Foi quando resolvi ir pra São Paulo.
Você trouxe muito essa questão de ascensão profissional e que, por ser mulher preta, a invisibilidade muitas vezes não reconhece essa ascensão. Como tu vê essa questão de ascensão a cargos por pessoas negras?
Eu acho que existe um racismo simbólico. Para você, qual o mito da mulher preta?
Eu acho que tem uma visão estereotipada que é mulher negra é sempre forte, atrevida, que fala na cara, agressiva demais para o que esperam de uma mulher....
Exatamente. Isso é racismo simbólico. Durante muito tempo eu fui considerada assim. As pessoas questionavam se me adequaria a certas empresas porque eu era forte demais, não era tão quietinha... E a verdade era que sempre fui direta, convicta, confiante no que eu falava e fazia. Se fosse uma mulher branca, talvez a visão seria diferente. E falando da mulher como um todo, pretas e brancas, há uma imposição da masculinização em geral, principalmente em cargos de liderança. E não! Nós somos mulheres, com nossas particularidades e mesmo assim capazes do mesmo jeito. Não precisamos nos portar como um homem para sermos respeitadas. Não podemos e não devemos. Olhando por outro lado, claro que para a mulher em geral, principalmente negras, existe por conta da pressão do mercado a necessidade que a gente se empodere, seja forte e impositiva. Mas a gente não é menos líder se formos mais acolhedoras, também. Hoje se está falando muito da liderança feminina como potencial de visão feminina e não como cópia de um jeito de liderar simbolicamente masculino. Isso é importante.
E o que você aprendeu ao longo do caminho sobre essa questão desse preconceito simbólico que intersecciona vários grupos identitários. No teu caso, ser uma mulher, preta e que ainda precisa comandar pessoas?
Eu acho que aqui no Rio Grande do Sul existe uma homogeneização. Quando você fala da força da mulher gaúcha, você precisa mostrar um pouco menos. Em São Paulo, sendo sincera, confesso que me sinto mais em liberdade para questionar, trazer meu conhecimento, debater... No Rio Grande do Sul existe ainda uma cultura de "deixa para lá", "melhor não falar", "vamos deixar assim". E isso tem o risco de levar qualquer trabalho para a mediocridade. Precisamos falar para construir, não é? Todas as vozes. Trabalhei com Patrícia Moura, head de Conteúdo da GUT, e estou trabalhando com o Itaú, que é uma marca que sempre sonhei, recebendo elogios dos clientes... O erro não é na gente. É na invisibilidade e falta de reconhecimento de alguns contextos.
E existe muito essa questão da tokenização, que é ter a cota de diversidade para qualquer ação ou campanha...
Eu acho que precisamos normalizar a diversidade. Uma vez ouvi que existe dificuldade em encontrar creators pretos. Eu respondi que provavelmente se está procurando com as pessoas erradas. Pessoas brancas não vão conseguir indicar pessoas pretas como as próprias pessoas pretas. Por isso, precisamos abrir esse espaço e acesso para trazer mais gente para dentro dessas ações e possibilitar um crescimento parelho dessas pessoas pretas, desses creators. O Rio Grande do Sul estatisticamente é o terceiro lugar com maior número de pretos no Brasil. Só que a construção simbólica no Rio Grande do Sul é eurocêntrica. Aqui, estou falando do que é mostrado, do que é valorizado, da construção narrativa. A gente tinha escravidão fortíssima, mas queremos nos passar como europeus. Isso tudo por causa da construção simbólica. A gente não é racista porque a gente quer, a gente é educado a isso.
E como podemos iniciar essa mudança? Como olharmos de forma mais otimista para essa construção que ainda está acontecendo?
Eu acho que a gente persiste. A gente resiste. Para uma visão otimista, mesmo que os movimentos cheguem aqui mais tarde, eles vão chegar porque ninguém foge do curso da história. Pode atrasar, mas ninguém foge. E o futuro que está se desenhando é um futuro diverso, com equidade racial. Temos um mundo de pessoas produzindo cultura que traz e representa essas mudanças e essa é a tendência. Só olharmos para filmes, músicas, séries, já vemos que existe um conteúdo preto em ascensão e esse conteúdo vai levar a uma mudança disruptiva estética. Eu tenho que conseguir descolonizar o olhar para entender que existe outra cultura estética. Quando uma Anitta leva o funk para uma grande premiação americana, isso já é uma quebra da estética colonizada. O que o mundo melhor vê no Brasil, é que o brasileiro mais odeia em si mesmo. E precisamos parar de nos desvalorizar. Quando eu leio em uma notícia "minorias" para a população preta, penso que isso está errado. Não é uma minoria, somos a maior população do Brasil. Ela é uma população minorizada. Ela foi levada a acreditar que ela é uma minoria. E aí você tira a força das pessoas se rebelarem porque a maioria está aqui para te enquadrar.
Para finalizar, o que é diversidade para ti?
Diversidade é um estado natural do ser-humano. A padronização é a maior perversidade que pode ter. Quando eu comecei a ver que o conceito de raça é um conceito criado, as coisas se expandiram ainda mais. Porque se você pensar, não existe nem raça branca. Geneticamente, a própria Europa é diversa. As pessoas, na verdade, foram racionalizadas: raça branca, amarela, preta e vermelha. Isso é um jeito de criar a hierarquia que a raça branca está acima. Mas, na verdade, não existe isso. Existem particularidades e todas são importantes. Desde a afro-saúde, ciência preta, tratamento específico para aquele tipo de pele. Não estamos falando de hierarquia e sim particularidades humanas. O ser-humano é adaptativo e ele foi se adaptando ao clima, solo, ele foi sendo diverso! O humano só conseguiu sobreviver tornando-se diverso. Então, diversidade é a sobrevivência e é o nosso futuro.
Esta matéria faz parte de um conteúdo especial sobre diversidade e Comunicação, produzido por Luan Pires para Coletiva.net. Todas as semanas, o jornalista publica uma entrevista exclusiva com o articulista do dia. Para conferir o artigo de hoje, assinado por Patrícia Carneiro, clique aqui.