Domício Grillo: Repertório de voz e luta

Rosto da cena musical independente porto-alegrense, comunicador da TVE tem trajetória marcada por batalhas e muita arte

Domício Grillo, artista e comunicador da TVE - Arquivo Pessoal

É 2015, o palco está iluminado e a banda a postos. O público da 23ª Moenda da Canção assiste aquele vocalista pegar o microfone e largar um ditado bem gaudério: "Tranquilo e sereno que nem baile de moreno". Ele é um homem negro, usa dreads e logo mostra a que veio. Vira o sentido da frase do avesso, mostrando com ironia uma letra de manifesto. O som vai da percussão bem afrobrasileira ao rock em segundos. "Moreno não é negro, não me vem com essa não", canta, na sequência. E fala de exu, e fala de periferia, e fala de samba. Quem acompanha o repertório não tem dúvida: ele, em si, é um manifesto. Ele, o Grillo.

Grillo, na verdade, nasceu Domício Felipe Martins Júnior, em 1975, o quarto filho do seu Domício - o primeiro homem. E já chegou especial. Era 31 de dezembro daquele ano e dona Celita estava na maternidade do Hospital Fêmina, de Porto Alegre, dando à luz ao guri. Da maternidade, no Centro da cidade, subiram direto o morro do bairro Santo Antônio. Foi ali que a família criou raízes, e as raízes da ancestralidade pegaram o 'ultimo filho' de jeito. O amor pela música, a consciência social e cultural, a identidade.

 "Esse guri fala demais", constataram os amigos da irmã mais velha. "Parece um grilo". O pai, que costumava mandá-lo para as festas com o grupo, para 'cuidar' de Cleonice, não imaginava que o Júnior ficaria pra trás a partir desses encontros. Nos anos 1990 ele já era o Grilo - e incorporaria o segundo L mais tarde, por pura estética, confessa. A partir dali, seria caracterizado pelo seu som. Das mais de 900 espécies existentes do tal bichinho, esse, em específico, era raro e ganharia os palcos, as ondas de rádio e as telas de TV.

Não foram só sua voz e seu som que marcaram o cenário gaúcho, mas também a valorização da cultura negra e da integração entre as raízes africanas com outras influências nas artes. Como no caso do trabalho de 'afro-metal', feito na banda Afoxetal. Entre os marcos do comunicador estão os dreads que carrega, inspirados na banda estadunidense de rock Living Colour. "Mais do que a questão estética, os dreads falam muito sobre mim", define ele. E promete: "Enquanto tiver cabelo, vai ter dread".

Misturando sons

Da Escola Venezuela ao Colégio Júlio de Castilhos, Domício Grillo se orgulha da formação totalmente pública. Cria da Zona Leste, foi na infância e adolescência com os amigos que aprendeu a curtir e fazer seu som. Das festas de domingo em clubes da Capital como Glória e Partenon Tênis Clube, surgiram as primeiras bandas. Com um nome de impacto, em inglês, a 'Post Morten' foi uma dessas precursoras em sua trajetória. Bateria, percussão, pandeiro, vocal e composições: o 'bichinho' era dedicado e arriscava em tudo. O trabalho dava certo, o que não vingava era a fama de "metaleiros", que terminava ao som de um Nei Lisboa ou, é óbvio, de Raul [Seixas].

Quando Racionais estourou nas rádios e o rap ganhou forças no Brasil, surgiu a 'The Thing', que misturava esse gênero musical com o rock, ganhando espaço na cena musical gaúcha. O orçamento da família do seu Domício era apertado, e o filho fazia bicos na construção civil junto com o pai, para comprar instrumentos e investir nos shows. O esforço valeu a pena. A rádio Ipanema selecionou sua banda para integrar o especial 'Elétrica Live', na MTV. Seria a primeira vez que seus caminhos se cruzariam com a TV.

De repente, na tela

O reencontro de Domício Grillo com a televisão foi gestado na biblioteca da PUCRS. Decidido a conseguir um emprego por concurso, passou a dedicar ao menos três dias da semana para percorrer a pé os quase quatro quilômetros entre sua casa e a universidade, com a qual já tinha intimidade, para estudar. Após passar em diversos concursos para serviços gerais - que era a profissão da mãe - e atuar, inclusive, no ramo na Procergs, surgiu o edital para a Fundação Piratini. Em 2002, veio a notícia: passou em terceiro lugar. Respirou aliviado, já que apenas os quatro primeiros colocados foram chamados.

A chegada foi no susto: se apresentou na rádio FM Cultura e ouviu que não tinha vaga. O destino seria a TVE. O vocalista desenvolto, que cantava palavras de conscientização em ritmo de rock na frente do público, teve que lidar com a ansiedade de se comunicar tão bem igualmente na frente das telas. E quem é gaúcho ou conhece o meio musical do Estado para além do tradicionalismo, sabe bem qual foi o resultado. Fez história à frente do programa Radar. Afinal, quem melhor pra divulgar a música independente, do que um artista da cena?!

A comodidade de estar em um meio tão íntimo não prevaleceu à curiosidade de conhecer em detalhes o audiovisual. Domício aproveitou a liberdade que uma emissora pública proporciona - sem pressão de anunciantes, por exemplo - para aprender de tudo e colocar em prática. Além da apresentação, fez produção, reportagem, aprendeu a editar vídeo e até a operar câmera. À experiência do Radar, agregou passagens por outras atrações como TV Cine, Nação e Estação Cultura. Foi nessa jornada que cresceu também o amor pela arte para além da música, virando um consumidor ávido de outras expressões culturais.

Correndo atrás

A trajetória bem-sucedida na TV foi precedida de muito perrengue. Quando o Ensino Médio chegava ao fim e a música ainda não pagava as contas, o guri entendeu que era hora de buscar um caminho alternativo. Ele decidiu cursar Relações Públicas, pensando em ficar próximo da cultura, mas fazendo algo que acreditava que o sustentaria. Ingressou na PUCRS, entretanto, foi preciso trancar depois de um semestre, porque o dinheiro da família não era suficiente. Voltou. Trancou de novo.

Entre estudos, anseios, ensaios, valia quase tudo para ganhar um dinheiro. Na faculdade, gravava spots pros colegas do curso de Jornalismo e ouvia: "Não pensou em ser locutor?". Virou meta. Assim como o seu Domício ergueu sua casa com as próprias mãos, o Júnior - ou melhor, Grillo - construiu seus objetivos. O curso de locução, que o possibilitaria ingressar na emissora pública do Estado anos depois, foi pago trabalhando em bandeiraços pela reeleição de Antônio Brito. O comunicador diverte-se com a ironia do destino: "E pensar que, se ele tivesse sido reeleito, provavelmente a TVE não existiria".

Com o certificado em mãos, virou profissão. Ainda longe de ter a mídia como sustento, o jeito foi correr atrás de um microfone que rendesse um salário. Lojas, supermercados e até em bingo - quando o jogo ainda era legalizado. O emprego, porém, acabou assim que mandaram cortar os dreads. Apesar desses desafios, o certificado de locução rendeu até programas em rádios independentes, como o caso do 'Samba, Suor e Cerveja', que fazia com amigos e passou por emissoras como Band AM e ABC.

Em off, mas nem tanto

Ao contrário do que possa parecer, também existe Domício Grillo afora as ondas de rádio, telas de TV e palcos. O pai do Lucca, de 16 anos, e da Sophia, de 11, é nerd de carteirinha - esta autenticada pelos bonecos de Star Wars e Super Mário que guarda em casa, e pelas temporadas devoradas de séries como Star Trek e Arquivo X. A paixão pelo mundo geek é dividida com os filhos, seja compartilhando animes, HQ's, videogame e jogos de tabuleiro - sempre que estão reunidos, já que moram com a mãe.

"Estar em casa" é a forma preferida de aproveitar o tempo livre. É ali que ele guarda uma câmera própria para produções independentes, como a feita para o projeto TV Nação Preta. Também em casa tem um projetor de filmes e uma coleção de livros. Lar, nesse caso, é, ainda, sinônimo de parceria. É onde está a companheira de vida e colega da Comunicação Fernanda Carvalho. Domício ri ao relembrar que o primeiro contato deles foi um cumprimento não correspondido pela nova apresentadora do Nação, na TVE, lá em 2014. Hoje, a guria que ele achou antipática é "companheira de dia a dia e de construção de projetos".

Projeto, inclusive, é o que não falta nos planos. Com uma graduação de Ciências Sociais quase concluída, o comunicador vê a possibilidade de unir suas duas áreas de conhecimento em uma mesma iniciativa. Lives, podcasts, consultorias para o terceiro setor...tudo isso está na lista de possibilidades dos próximos meses e anos. Tem até disco sendo finalizado, com death metal, groove e experimentações eletrônicas.

O que não tem é vontade de parar. Ele quer seguir comunicando pro mundo o que é ser uma pessoa negra e urbana em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Continuar sendo aquele Grillo que movimenta a platéia com um microfone na mão, cantando sempre: "Tranquilo e sereno que nem baile de moreno, e nunca aos tranco que nem baile de branco".

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