Juliana Motta faz doutorado analisando testemunhos na Boate Kiss

Depois de atuar como repórter no incêndio, jornalista defenderá tese em abril de 2022

Juliana Motta na dissertação do mestrado em 2016 - Arquivo Pessoal

Juliana Motta era repórter da RBS TV, de Santa Maria, quando foi acordada na madrugada de 27 de janeiro de 2013, pelo então coordenador de TV, Luis Eduardo Silva, que a avisou sobre um incêndio com 20 mortos dentro da boate Kiss. "Na hora, duvidei, perguntei quem havia confirmado aquela informação? Ele me respondeu: estou aqui e tem corpos na calçada". Na entrevista concedida recentemente ao portal Coletiva.net, ela contou que, após viver intensamente aquela cobertura, decidiu voltar à Academia em busca de respostas.

Ela defenderá em abril de 2022 a tese de doutorado: "estou aprofundando agora quem é convocado a dar testemunho na cobertura e que funções esses desempenham na narrativa? De que forma contribuem, que papéis o Jornalismo permite que eles desempenhem. Tudo isso considerando as condições de produção da cobertura de tragédia- que são muito distintas das de normalidade", contou. No estudo, a doutoranda analisa três grandes coberturas: incêndio da Boate Kiss, rompimento da barragem da Samarco em Mariana e acidente aéreo da delegação da Chapecoense.

Desde o mestrado, iniciado em 2014, Juliana estuda o testemunho na cobertura de tragédias, ou seja, os relatos de experiência das pessoas afetadas pelo acontecimento. Ela analisou os testemunhos na cobertura do caso da Boate Kiss. Na dissertação, ela analisou os papéis que os testemunhos desempenharam nas primeiras 72 horas de cobertura ao vivo, realizada pela Rede Globo e RBS TV. Foram 44 entradas ao vivo, com a participação de 61 fontes jornalísticas, sendo: 20 autorizadas/oficiais, 25 especialistas e 16 testemunhais. "No estudo, descobri que as fontes testemunhais são priorizadas pelos jornalistas nas primeiras horas após o fato, quando é preciso compreender, ainda em caráter preliminar, o que aconteceu", comentou a doutoranda.

Ela também verificou que, durante a manhã daquele 27 de janeiro, 75% das fontes ouvidas foram testemunhais, e 25% especialistas: "O que significa uma ruptura nas práticas jornalísticas", revelou a jornalista. O estudo aponta que no período da tarde, as testemunhas despencaram para um índice de 26,6%, enquanto as autorizadas/oficiais subiram para 46,6%, e as especialistas mantiveram-se próximas do índice inicial (26,6%). Os dados, segundo Juliana, demonstram que, quando o período de caos e desestruturação do ambiente provocado pela tragédia é superado e algumas informações estabilizadas, as testemunhas perdem parte de seu prestígio, cedendo lugar às fontes autorizadas/ oficiais e especialistas. Ou seja, a convocação de fontes retorna à lógica usual.

Sobre as testemunhas, ela observou que os depoimentos passaram a ter um caráter mais ilustrativo do que explicativo, tendo em vista as questões iniciais (como o fogo iniciou e como foi a saída da boate) já estarem parcialmente delineadas. Para Juliana, com o avanço das investigações e a alteração do enfoque da cobertura, houve retorno da lógica usual do Jornalismo de priorizar as fontes de autoridade e conhecimento.

No estudo, ela verificou ainda que os voluntários e moradores eram os testemunhos menos dramáticos, porém demonstravam a comoção gerada na cidade. "Ainda faço toda uma análise das contribuições desses para a cobertura, se funcionam como provas de verdade ou de emoção, a partir dos conceitos de Charaudeau (2010)", explicou. 

Segundo ela, todas essas análises mostraram a importância dos testemunhos na cobertura de tragédias. Nas primeiras 72 horas de cobertura do caso Kiss, 66% colaboraram como provas de verdade. O que põe em dúvida a ideia de que testemunho só serve para emocionar, argumentou ela. Juliana comentou ainda que, no caso Kiss, eles foram decisivos para esclarecer o que ocorreu na boate e questões polêmicas, por exemplo. "Eles ocuparam, por muitas vezes, os papéis que, usualmente, seriam destinados às fontes oficiais ou especialistas", resumiu ela.

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